José Saramago por extenso

17.11.06 at 11:08 da manhã

JL nº 942 - recensão de M. Alzira Seixo

Transcrevo do JL nº 942 uma recensão crítica de Maria Alzira Seixo a As Pequenas Memórias:
"História do Lagarto Verde
Saramago dá-nos, com As Pequenas Memórias, o trigésimo nono volume da sua obra. Mais consagrada ao romance, é de facto obra de polígrafo: integra outros géneros de ficção (conto e novela), significativa produção de teatro, escritos opinativos e autobiográficos, livros de crónicas e de poesia que lhe marcam o início da carreira e nos quais encontramos em esboço muita da sua temática posterior, e textos híbridos que equacionam em densidade o seu modo de articular literatura e mundo: O Ano de 1993 e Viagem a Portugal. Após Cadernos de Lanzarote, o entendimento do eu como objecto de reflexão e não apenas ponto de vista dá agora outro resultado de escrita, que o autor judiciosamente apelida de memórias.
O memorialismo parte do eu, mas enquanto postura narrativa de quem dá a ver as coisas e sabe que se arrisca a ser comprovado, ou não, no que conta; o memorialismo não se ocupa do eu para o narrar como objecto privilegiado, caso em que resvala para a autobiografia, e por isso alcança a sua integração reflectida na comunidade e, nesse sentido, ultrapassa a subjectividade para traçar lugares e tempos que valem por interesse próprio, enquanto modos de vida idos que são raízes e alimento da sociedade actual. Como fez Saint-Simon, o memorialista que Proust punha acima de todos, seguindo-o na sua obra compósita de memórias, autobiografia e ensaio, que é sobretudo ficção.
Quem ler As Pequenas Memórias vê satisfeita a curiosidade de saber como viveu e cresceu este vulto das Letras, e será surpreendido pela lição de briosa humildade que elas contêm, assim como pelo exemplo de trabalho e estudo que fazem, do menino rústico e sem condições, a culta e interventiva personalidade que é Saramago no mundo de hoje. Este exemplo não pode ser entendido como expoente de regra, pois é excepção, mas permite ponderar os resultados do facilitismo no ensino actual, assim como condições que, proporcionadas sem sentido moral e afectivo, não dão frutos. Os objectivos morais não emergem na escrita do texto, mas o certo é que nele se fala muito de costumes. Que erguem diante de nós terra e gente, um estilo de vida do campesinato e de classes urbanas desfavorecidas. Sem propaganda nem miserabilismo. Na real.
Um lagarto na memória
Na real, é como quem diz. Naquela camada de real indestrinçável de factos, emoções, ecos, pressentimentos, interpretações e olvido recuperado que leva a acarinhar ou idealizar a vida passada, mesmo se foi difícil. E a isolar nela grandes acontecimentos e pormenores fortuitos que, postos por escrito, os irmanam em poder de repercussão. Por isso acho nestas memórias do «rapazinho da Azinhaga» (a que o autor chama «as memórias pequenas de quando fui pequeno») a história do lagarto verde.
Dir-se-á, com razão, que o livro dá conta da expressão indelével provocada no sujeito da escrita por pessoas (os avós maternos, o primo José Dinis, o irmão Francisco), lugares (o rio Almonda e o Tejo, o olival, ruas de Lisboa), habitações (em constantes mudanças por partes-de-casa), momentos afectivos (encontros com raparigas, a ternura dos bacorinhos que dormiam com o avô, o medo dos cães, o gosto pelos cavalos), de lazer aprazível (idas à pesca ou ao cinema «Piolho»), de contacto problemático com os outros (a maçaroca surripiada ao primo), de entrada na escrita (escrever na pedra, os ditados na escola, a primeira quadra). Tudo isso é o livro.
Mas o livro é também o lugar original formulado no começo, em estilo indirecto (como o nome que a contingência cola à pessoa), a colocar no coração da frase um caminho tosco de vida (a «azinhaga»), ligado à História e à imaginação, às águas do rio e às árvores que o bordejam, e ao extenso olival com troncos em cujas locas «se acoitavam os lagartos», destruído pelas transformações agrícolas da União Europeia. «Contam-me agora que se está voltando a plantar oliveiras», escreve o autor; «o que não sei é onde se irão meter os lagartos». E de certa forma, nestes troços despegados da recordação (como as talhadas de melancia que come, já perto do final), «o pobre de mim», como ironicamente se autoapelida ao jeito de Fernão Mendes Pinto, parece não ter em vistas um fito muito estável, oscilando entre um projectado Livro de Tentações e estas memórias do «eu pequeno», do qual não anda visivelmente à procura já que é ele que aqui o comanda. E do que a mim me parece que anda à procura é de saber mesmo onde se meteram os lagartos. Como se a própria estrutura da narrativa, dada em continuidade de discurso mas entremeada de espaços em branco, figurasse frinchas por onde esses seres vivos alapardados ao sol da memória se escapam quando pretendemos alcançá-los com os gestos das nossas sombras escritas.
A mistura de real e imaginário, dada pela memória que inventa a vida para a dar em literatura, atravessa a individualidade do memorialista para reconstituir esboços de história das mentalidades, hábitos quotidianos, crenças e modos de agir hoje raros. Quem se lembra do uso de defumadouros para afastar doenças e mau olhado? Ou do ruído da «costureira» em tardes de verão ou serões silenciosos de leitura e bordados? Eu lembro-me. Como me lembro do sistema de contabilidade dos analfabetos de então, o da avó Josefa de Saramago e da minha tia Emília, que tinha um lugar de fruta e hortaliça e não lhe falhava um tostão no rol de fiados, com aqueles sinais que mais ninguém entendia e me ensinou, de círculos fechados com uma cruz interna (um escudo), um traço diagonal interno (cinco tostões), sem traço (um tostão) e risco sem círculo nenhum (meio tostão). Ou sistemas de partilha empírico-afectiva, como a sopa que o petiz e a mãe comem do mesmo prato, com duas colheres e um de cada lado. Ou o costume, por necessidade e natureza, de andar de pé descalço; ou ainda, entre pavores e tentações, e medo do escuro como todas as crianças, dormir no chão com as baratas, «não estou a inventar nada, de noite passavam-me por cima», diz ele sem mais comentários. E passa adiante, tal como o petiz dormia. E que passou adiante vê-se em cenas do ontem dadas por ele hoje, como a do Otelo de Mouchão de Baixo ou do sapateiro que lia Fontenelle. Para pé-descalço e meio prato de sopa, não se pode dizer que José Saramago venha mal alimentado do caminho que percorreu.
Nas asas da palavra
Ao ouvir ler em voz alta o primeiro livro de que se lembra, Maria, a Fada dos Bosques, Saramago entra em contacto com a literatura, e o importante não parece ser tanto a impressão que lhe provocam cenas do livro como a sensação de ser levado a outros mundos pela articulação encantatória das frases, revigorando em experiência pessoal as «palavras aladas» de Homero que como escritor tenta também. Essa é talvez a maior das tentações neste livro onde, a certa altura, explica que a sua génese era a de ponderar sobre «a teratologia da santidade», isto é, os desejos e monstros, os pesadelos e pavores da noite que afligiam a mentalidade infantil reprimindo a sua expansão de natureza humana. É por isso que a Saramago-criança se vai contrapondo o Saramago-homem, a olhar para si de longe e para o mundo onde, pequeno, mas porque pequeno é o homem, se integra natural e artificiosamente. Com a sua propensão para a integração na natureza (campos, animais, costumes urbanos primitivos) e a vocação da construção da arte. Quando relata as idas à pesca em petiz, e a imobilidade espelhada do pedaço de rio, é o Saramago de hoje quem escreve, a partir da indizível sensação da criança: «não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água». A recordação é por vezes confessada invenção («senti dentro de mim, se bem recordo, se não o estou a inventar agora, que tinha, finalmente, acabado de nascer») assim se transmudando em descoberta; outras vezes acontece, inexplicável, pois «esquecemos o que gostaríamos de poder recordar» e, por outro lado, «recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo estímulo, vêm-nos do passado imagens, palavras soltas, fulgurância, iluminações, e não há explicação para elas, não as convocámos, mas elas aí estão». O livro termina com uma iluminação destas, forte e concentrada, adjacente ao que se narrou, e onde o autor se dá como sujeito de observação e participante moral da acção. Aquilo, afinal, que o escritor vai ser. Passa-se nas ruínas de uma malhada de porcos, entre um homem e uma mulher não identificados, e o narrador (jovem) senta-se num valado, «a distância, perto de uma oliveira ao pé da qual, dias antes, tinha visto um lagarto verde». E quando a cena termina, com a partida das personagens, o livro finda também com a observação do autor: «nunca mais tornei a ver o lagarto verde».
Os lagartos, que de início afirmava não saber onde se tinham metido, meteram-se afinal aqui no livro, como símbolos da familiaridade terrestre e do gosto pelo sol, em lendas mediterrânicas representando a inexorabilidade da morte. Como reconhecimento também da inocência perdida, sobretudo porque a observação se segue à menção da morte de José Dinis, o primo com quem se dava como o cão e o gato, e a quem, nas penúltimas linhas, furtara a maçaroca, após saborearem ambos a bela melancia de casca verde-escura, de cujas talhadas foi ficando o «castelo» ou «coração». Isto é, o cerne da recordação. A simbólica de Saramago é sempre objectual e pede para ser lida à letra, como palavra a saber a sentidos, mas a sua notação sóbria, despojada, emerge isolada no texto, a despertar os sonhos e tentações, também no espírito do leitor."

at 10:25 da manhã

Saramago em entrevista a Adelino Gomes (conclusão)

Continuo a citar o suplemento "Mil Folhas" do jornal Público de 17 de Novembro:
"[...]MIL FOLHAS - É este um livro à procura da idade da inocência? A idade em que todos os pecados são perdoados? Dos que confessa, o maior talvez seja o ter desviado uma maçaroca do seu primo José Dinis...
JOSÉ SARAMAGO - ... o resto é tudo natural.
P. - Bom, há uns jogos de amor...
R. - À procura da idade da inocência, ou da idade em que se supõe que se é inocente? Tínhamos de ter uma definição bastante exacta de inocência. É-se inocente da mesma maneira aos quatro anos do que aos oito? Não, ainda que haja uma dose importante de inocência em cada uma dessas idades.
P. - O que pretendeu, então?
R.- A minha infância nunca se desvaneceu nas brumas da dita memória. Eu considero que, se não somos a criança que fomos, pelo menos a criança que fomos gerou a pessoa que somos. Se a minha vida tivesse sido só em Lisboa, é possível que eu não escrevesse este livro. Mas a recordação daqueles anos que vivi...
P. - ... muito poucos: passava lá as férias, apenas.
R. - O que conta é a intensidade das vivências, não é a duração delas. Comecei a ir para a Azinhaga quando tinha quatro ou cinco anos. Antes disso não tenho memórias. Mas a partir dos seis anos até aos 15 ou 16, já é muito claro para mim. Ia nas férias grandes, nas da Páscoa, do Natal, tudo quanto era férias. Muitas vezes os meus pais não iam mas eu ia de certeza.
P. - Por que é que a grande cidade, que é tão mágica, não lhe deixou essas marcas que deixou a aldeia, pobre?
R. - Eu não tinha vindo da aldeia. Vim para Lisboa com um ano e meio. O mágico tinha ficado lá. É um fio que não se interrompeu. O fio veio da Azinhaga até Lisboa e imediatamente foi de Lisboa até à Azinhaga. E todo esse tempo houve uma espécie de "vai e vem" entre um lugar e outro. Mas o lugar onde eu queria estar, de facto, era a aldeia.
P. - Tirando algumas descrições da ida a cinemas de bairro, a cidade acaba por não ser um cenário forte da sua escrita. Por que será isso?
R. - Provavelmente eu tinha a imaginação demasiado ocupada com a aldeia e a nostalgia de cada vez que saía de lá, porque saía de lá com lágrimas. A aldeia eram os meus avós, a casa dos meus avós, a bicharada - as galinhas, os galos, os patos, os porcos - e aquilo que sempre foi a minha fascinação: os longos passeios sozinho. Aquele não era o tempo em que os pais diziam "tem cuidado, olha que...". A gente saía, saía.
P. - Punha o alforge, tomava um conduto...
R.- ... e andava quilómetros e quilómetros. Às vezes era simplesmente o rio, ou para pescar, ou para nadar, ou para remar [e conduzir o barco à vara no rio Almonda, afluente do Tejo], que é das coisas de que tenho mais saudades.
P. - Porquê voltar àquelas histórias que já nos comoveram tanto [quando as contou no discurso do Nobel, em 1998, em Estocolmo], como a do seu avô que se despediu uma a uma das árvores do quintal, antes de morrer; da sua avó que lavava os bácoros mais fraquinhos, no Inverno, e os levava para o quente da cama, assim os salvando?
R. - Não se contam só essas. Contam-se histórias que você nunca tinha ouvido: a do meu tio Francisco Dinis, que queria matar a minha tia [Maria Elvira]; a história de Domitília [prima, com quem fez jogos amorosos na cama, com menos de 10 anos], você também não sabia nada disso. O que não teria sentido é que, tendo de escrever este livro - porque eu tinha de escrever aquele livro, queria escrevê-lo desde há muitos anos -, omitisse aquilo que já tinha contado.
P. - Acha que os seus leitores ficavam mais pobres se não conhecessem esses episódios da sua vida, alguns até feios, desagradáveis?
R. - Eles dirão. Você acharia natural - ainda que, conhecendo-me, estranhasse - que eu me pusesse a escrever a minha autobiografia até ao minuto antes. Do meu ponto de vista, não valeria a pena, não o farei. Sentiria vergonha, como já disse. Agora esta pequeníssima autobiografia, de uma criança que não tem ideia nenhuma do futuro que vai ter, que nasceu num meio que não era o mais propício a grandes aventuras intelectuais?...
P. - Há uns anos escreveu quatro ou cinco livros ["Cadernos de Lanzarote"] que outra coisa não foram do que um diário da idade adulta...
R. - Parei porque o último era de 1997. No ano seguinte ganhei o Prémio Nobel. Imaginar-me a contar o prémio e tudo o que veio depois - os aplausos, as emoções, as condecorações, os doutoramentos, não. Afasta de mim esse cálice! Tive de cortar. Não senti que fosse higiénico entregar-me a esse exercício.
P. - O que é que deve a esses primeiros anos da sua vida?
R. - Não se trata de dever. Creio que me reconheço nesse tempo com a mesma realidade que me conheço hoje. Sei umas quantas coisas mais? Sim. Mas se olho para dentro de mim, não vejo diferenças.
P. - As suas grandes decisões, tomou-as na idade da razão. Até chegou a escrever uns livros que depois repudiou. Aquilo que verdadeiramente José Saramago é, no fundo, é aquilo que foi sem ter responsabilidade nenhuma nisso, mais aquilo que passou a ser a partir do momento em que se tornou responsável pelos seus actos.
R. - O quê, concretamente?
P. - O resto, a partir dos 15 anos.
R. - Tinha que meter aí uma série de coisas que não me apetecia escrever: os namoricos - a que me refiro também neste livro, mas com uma certa distância e uma certa ironia...
P. - ... a Domitília e a Maria da Piedade, se estivessem vivas, talvez não apreciassem muito...
R. - ... brincadeiras, quem não passou por elas? Cito sempre aquelas palavras de Alexandre O"Neill: "Não contes a vidinha." Sigo-o. E a prova é que, tirando o "Manual de Pintura e Caligrafia", onde há dados autobiográficos que surgem depois aqui, não há dados pessoais nos meus livros.
P. - No fundo, vem contar ao mundo a parte do tempo que viveu, mas da qual não tem responsabilidade nenhuma: a paisagem, os pais e avós, os vizinhos.
R. - Estava a construir-me, ora essa.
P. - Milhares de pessoas ao mesmo tempo estavam a construir-se e viveram assim, exactamente. A sua diferença [em relação aos outros] é depois.
R. - Também quando o Salazar nasceu em Santa Comba Dão e andava lá atrás das cabras, se é que andou, nunca lhe passou pela cabeça que viria a ser aquilo que foi.
P. - Salazar e Saramago, depois disso em que foram, se calhar, iguais, diferenciaram-se.
R. - Mas foram isto depois disso. O tempo não se interrompeu. A pergunta deve ser posta ao contrário...
P. - ... se for melhor do que a minha, fico-lhe agradecido.
R. - Teria você feito o que fez se não tivesse vivido essa vida pequena e insignificante - ou aparentemente pequena e só aparentemente insignificante? A grandeza que eu lhe encontro é exactamente essa: uma criança no meio do mundo. Tire-lhe a paisagem, essa palavra não interessa. Uma criança no meio do mundo olhando em redor e dizendo: "Estou aqui."
P. - A minha pergunta não era exactamente essa. Era: o senhor esteve no meio do mundo como milhões de outras crianças do mesmo mundo. E no entanto foi diferente deles todos. A sua singularidade começa aí.
R. - Se você pensar em si mesmo...
P. - ... se calhar estou a pensar em mim mesmo...
R. - ...tem de chegar a essa mesma conclusão e fazer essa mesma pergunta: em que momento é que eu comecei a ser o que sou? A única resposta é esta: começámos a ser o que somos no dia em que nascemos. Não vale a pena especular muito mais ao redor disto. Agora: ao longo da vida podem acontecer coisas que abrem caminhos até aí inesperados. Por exemplo: escrevi um livro em 1947; outro que ficou inédito; depois não escrevi nada mais durante 19 anos. Se eu tinha ganho o apetite de escrever, por que é que não continuei?
P. - Porque aí tinha já a razão e tinha o sentido crítico. Aquilo não lhe chegava.
R. - Muito bem. Concluí (embora só mais tarde o tenha pensado): "O que estou a aproveitar são sedimentos de leituras; não vivi nada, não sei nada e estou para aqui aldrabar." Depois aparecem os "Poemas Possíveis" e uma série de livros, a partir de 1966. Aquilo que eu sou deve ter começado por alturas dos últimos dias de Novembro de 1975. É então quando eu decido que tenho de procurar trabalho. Claro que o meu partido não teve a gentileza de me convidar para ir para a redacção de "O Diário", como fez a todos os que saíram do "Diário de Notícias", na altura. Na altura não gostei nada. Hoje continuo a não gostar, mas agradeço.
P. - Ganhámos um escritor, não sei se tínhamos ganho um jornalista comunista interessante...
R. - Tenho já uns seis ou sete livros escritos. Estou sem trabalho nem esperança de ter. O que é que faço? Foi aí que decidi, sem dramatismo nenhum, como quem sente que chegou a hora de tomar aquela decisão: "Vou ver o que é que posso finalmente fazer para chegar a ser um escritor." Até aí tinha livros, mas não me via como escritor. É aí que vou para o Alentejo; é aí que vivo, durante seis ou sete anos de traduções.
P. - Não seria interessante escrever um livro em que nos contasse mais profundamente isso tudo, à semelhança do que fez sobre a sua infância?
R. - Isto conta-se em meia página.
P. - É curioso que esse universo por onde se movimenta e o seu olhar se espraia, no livro, nunca enxergue o mundo dos possidentes. Há um seu tio que trabalha para um senhor rico; há no liceu um menino rico a quem as criadas vão levar o almoço...
R. - ... e há os patrões da minha tia Maria Natália...
P. - ... os Formigais. Mas é tudo muito distante, de resto renuncia até a chegar-se-lhe um pouco mais quando surge a oportunidade de ir ao palacete do tal menino "gordo, triste", porque percebe que foi apenas um instrumento.
R. - Tinha deixado de ser útil, pensei. O caminho dele era outro: ele estava no liceu, eu tinha ido para a Escola Industrial aprender a ser serralheiro mecânico. Não devíamos ter muita coisa a dizer um ao outro.
P. - O poder, a riqueza, a existência de uma outra condição - isso não o tocou, nunca, neste período, sabendo nós que se torna, depois, um homem que quer mudar o mundo?
R. - Há que entender o que era ser pobre nessa época. A gente nascia pobre e ficava pobre. O mundo parecia que estava organizado assim. Havia uma espécie de aceitação dos factos. Eu era uma criança, se os mais velhos tinham aceitado os factos, eu também os aceitava. Era assim. Nós, os da minha classe, tínhamos com essa outra classe uma relação de dependência. Quem era pobre ia para a praça ser escolhido para ir trabalhar durante uma semana ou alguns dias. Os capatazes vinham, escolhiam este, aquele, outros ficavam.
P. - Quando o livro termina, o José Saramago passa pelo palacete, indiferente, ou conformado ao seu destino e ao destino diferente a que o seu colega do liceu estava destinado.
R. - A construção do meu destino talvez comece aí. No fundo, essa ideia de que com os poderosos não há que ter relações - primeiro, porque eles não querem; depois, porque talvez nós não devamos - começa aí, para mim, de uma forma inconsciente. Que interessa ir a casa da família Veiga, ou da família Faria, dos grandes latifundiários lá da terra? Eu era o neto do Jerónimo Melrinho, nada mais. Não tinha entrada. Como é que eu podia falar deles? Mesmo hoje, sou incapaz de pôr num romance meu um rico. Porque não os conheço. Dizer simplesmente "aqui está um personagem rico", e de três em três páginas, para que o leitor não se esqueça, lembrar que ele é rico, não é evidentemente suficiente. Tenho uma espécie de rejeição instintiva aos salões do poder.
P. - Embora nos últimos 20 anos não tenha feito outra coisa que não pisar corredores alcatifados.
R. - Circulo por aí com naturalidade. Mas entro e saio. Não fico lá.


Espero poder escrever ainda mais um livro ou dois

José Saramago diz que se sente tentado a fechar o círculo, com esta autobiografia. Porque acha que esgotou, de algum modo, os grandes temas da vida. E porque não lhe interessa estar a contar agora "a vidinha".
P. - Já lhe "caiu" entretanto algum título, do limbo da inspiração [como costuma contar que lhe acontece regularmente, talvez com a excepção de "Levantado do Chão", que não nasceu "de qualquer iluminação súbita"]?
R. - Ainda não. Não sei se deva estar inquieto, ou não. Às vezes tem tardado mais. Este livro é um livro perigoso, sabe.
P. - Porquê?
R. - Porque é um livro tentador.
P. - Em que sentido?
R. - No sentido em que, no fundo, fecha o círculo. E se eu me deixasse ficar por aqui?
P. - Os seus leitores mais fiéis responder-lhe-iam: "Desculpe lá, ainda só vai nos 15 anos. A parte mais rica da sua vida está ainda à espera [de ser contada]..."
R. - Vamos lá a ver: autobiografia já disse que não haverá. Enfim, espero poder escrever ainda mais um livro ou dois.
P. - Na entrevista sobre "As Intermitências da Morte" interrogava-se sobre se não teria já chegado o dia em que já não teria nada mais a dizer [Mil Folhas, 12-11-2005].
R. - Essa é uma questão que se apresenta. Sobretudo - se me é permitido dizê-lo nestes termos - para o caso da literatura que eu faço.
P. - Pode explicar melhor?
R. - Nos meus livros, sobretudo nos romances, abordo questões da nossa vida que considero importantes. Isso levou-me a um tipo de temas e de escrita que aspiram, não direi à universalidade, mas a interessar a todos nós, em menor ou menor grau. Ou pelo menos àquelas pessoas com quem, por pertencerem a culturas próximas das nossas, temos uma linguagem, conceitos e práticas em muitos aspectos comuns. Este tipo de abordagem não admite repetições. Não quer dizer que eu tenha dito tudo em cada caso. Mas não posso acrescentar nada mais àquilo que já está escrito. Se eu contasse a vidinha, para voltar ao O"Neill (isto é: com quem fui para a cama, os copos no bar, o emprego que se ganha ou se perde), isso sim, podia repetir à saciedade.
P. - Se acaso acontece que é o último, o último parágrafo que terá escrito será aquele em que conta a história da infidelidade de uma mulher da aldeia, que surpreende com um forasteiro, entre a vegetação, nas ruínas de uma antigas malhadas de porcos, onde dias antes tinha avistado um grande lagarto verde. As frases com que termina o livro: "O homem acendeu um cigarro. Soltou duas baforadas, depois deixou-se escorregar do valado e despediu-se: "Adeus." Eu disse: "Adeus." A mulher tinha desaparecido de vez. Nunca mais tornei a ver o lagarto verde."
R. - O fecho desse livro, por excelência, é esse. Recorde-se que ela disse que eu ia dizer ao marido. Não é preciso dizer que não o fiz.
P. - Sim, portou-se bem. Diz que esgotou, de algum modo, os grandes temas que lhe interessa abordar. Também acha que isso aconteceu no plano literário?
R. - Eu referia-me ao plano literário. Embora se trate de problemas no plano temático, eles são tratados num plano literário. Bom, mas dito isso, acho que será impossível que eu tivesse esgotado nos meus livros tudo quanto são questões temáticas. Possivelmente daqui por quatro dias vem uma ideia. Não entremos em pânico... "

at 10:17 da manhã

O aniversário de José Saramago no "Jornal de Notícias"

Continuo a citar o Jornal de Notícias de hoje: "[...] O breve reencontro com amigos de longa data e com alguns familiares que fizeram questão de o cumprimentar por mais um aniversário emocionaram o escritor, mas o homem não chorou. No final da cerimónia, explicaria porquê "Se vocês fossem menos já teria chorado, mas vocês são tantos que nem sequer chorar posso". Não precisava.
Transparecia-lhe nos olhos a alma e a memória de um rapaz que nasceu numa aldeia à beira-rio, "neto de camponeses e filho de uma mãe analfabeta". Foi notório o carinho com que recebeu presentes e surpresas, entre as quais a versão ainda não corrigida do seu livro "As Pequenas Memórias" em espanhol, tradução a cargo da sua mulher, que foi terminada anteontem.
Após tantas solicitações e cumprimentos, o escritor disse, por fim, que "não esperava". "Entre as surpresas que tenho na minha vida, talvez a principal tenha sido esta". "Só por isto valeu a pena ter chegado aos 84 anos", afirmou, às centenas de pessoas presentes. Muitos já de livro na mão - a Caminho montou uma banca no local - ouviram Saramago despir a pele de cidadão do mundo e regressar à simplicidade e ingenuidade da criança que foi "Se não tivesse nascido aqui não seria a pessoa que sou".
O neto da Josefa e do Jerónimo viu muitas crianças na assistência e foi também a elas que se dirigiu, quase no final da sessão de lançamento do livro em que conta as memórias dos seus primeiros 15 anos. Pediu-lhes para serem responsáveis, como quando dizia à avó que ia dar uma volta. Aos pais, disse "Cuidem das vossas crianças". "Ajudem-nas a aprender, a serem educadas e a respeitar os mais velhos, para que sejam pessoas mais conscientes e capazes de entender o mundo", afirmou.
No dia em que voltou à Azinhaga para "acabar de nascer", o escritor perguntou "Qual seria o meu destino?" Numa zona ainda hoje predominantemente rural, o mais certo seria a "enxada". Não foi. Talvez porque muito cedo saiu da aldeia, aos dois anos, levado pelos pais, "migrantes empurrados pela necessidade". Talvez porque já em criança era mais introspectivo que os outros meninos, mais atento ao mundo que o rodeava. Como chegou onde chegou? "Não sei", respondeu, perante uma plateia esfomeada de explicações, que não se satisfez com tão pouco. "Parece que vou ter de comprar o livro", desabafa um espectador.
A memória deste dia, "Zézito", o Saramago, "a alcunha por que a família era conhecida na aldeia" ou apenas José de Sousa, não deverá esquecer.".


at 10:06 da manhã

O aniversário de José Saramago no "Diário de Notícias"

Continuo a citar Isabel Lucas, no Diário de Notícias: "[...] São duas da tarde e Maria Silva limpa a rotunda à entrada da Azinhaga, junto à placa que assinala "a aldeia mais portuguesa do Ribatejo". A mulher mal se nota, escondida pelas letras 'Parabéns Saramago', azul em fundo branco a indicar o lançamento do livro de memórias do Nobel da terra e em dia de aniversário.
A casa de Maria Silva há-de ser uma entre as muitas que vão ficar desertas quando forem cinco da tarde. Fica ao lado daquela onde mora "uma prima mesmo carnal" do escritor, especifica. Todos, na Azinhaga, parecem ter uma história para contar que inclua o autor de A Jangada de Pedra. Na rua da Estação, Avelino pára o carro enquanto acende um cigarro à pressa. Quer mostrar um quadro que acabou de pintar e que o afilhado, o presidente da Junta de Freguesia, irá oferecer daí a poucas horas "ao amigo Saramago", filho de José. "Ando à procura de umas ripinhas para a moldura", explica enquanto exibe, apoiado à roda traseira, um retrato do escritor em pirogravura que pintou.
São os últimos preparativos, indício de azáfama na terra, com os homens à porta das tabernas a comentar a gente que vai chegando e a água do Alviela que vai subindo. "Isto qualquer dia parece Veneza", diz um dos mais novos. Os outros confirmam que a cheia está por pouco. Estão sentados em bancos de madeira e cadeiras de plástico na praça principal, junto a um parque de estacionamento, relicário de bicicletas com caixas de fruta, pasteleiras com cadeiras de bebés, Ye-yés de Luxo made in Aveiro.
E a banda filarmónica afina instrumentos e o rancho folclórico sai à rua. À entrada do pavilhão onde Saramago há-de apresentar As Pequenas Memórias, três porcos a assam no espeto. No interior, improvisam-se bancadas feitas de palha e decoradas com mantas ribatejanas. Numa cadeira, há um volume do Principezinho esquecido e num barril de madeira, as bandeiras de Portugal e da Azinhaga esperam para ser hasteadas.
José Saramago chega com cerca de meia hora de atraso, já a rua em frente à Junta de Freguesia está cheia. "Vieram cinco autocarros", comenta alguém. Trazem gente de Lisboa, idosos dos lares dos arredores, crianças das escolas. O escritor distribui cumprimentos e a banda toca a mesma melodia, tantas vezes quantas forem necessárias. "Não esperava tanta gente. Creio que a Azinhaga está toda aqui", comenta o Nobel da Literatura no percurso a pé entre a Junta e a fábrica, mão dada à mulher, Pilar del Rio, "a fomentadora desta conspiração", como a há-de apresentar daí a pouco. E o pavilhão que parecia enorme, enche. Parece pequeno para tanta gente. Gente da terra, de Lisboa, do Funchal, Madrid, Barcelona, Sevilha... E entre tanta gente de tantos sítios está Barbara Terseglav, a tradutora eslovena de Saramago.
Já o Presidente da Junta agradece aos conterrâneos o empenho, os coscorões, as broas... enquanto no placo se projectam slides de uma aldeia antiga, a das memórias do "neto de dois camponeses analfabetos, filho de uma mãe também analfabeta e de um pai que sabia juntar letras e contar", como haveria de se apresentar; um escritor aos 54 anos que teve o primeiro grande sucesso aos 60, com o Memorial do Convento a mostrar que "os velhos também podem trabalhar". Foi depois de Zeferino Coelho, da Caminho, lhe oferecer uma edição de A Toutinegra do Moinho, o primeiro livro que Saramago leu. Edição única, exemplar irrepetível. E a Alfaguara, a sua editora espanhola, surpreende-o com a edição em castelhano de As Pequenas Memórias, tradução que Pilar del Rio terminou 24 horas antes. E lá estava o quadro de Avelino, já com "ripinhas".
Presentes em dia de anos. Oitenta e quatro. Uma troca. "Saramago devolve à sua terra em palavras belas e precisas o amor que recebeu aqui", refere Zeferino Coelho. E ouvem-se essas palavras pelo barítono Jorge Vaz de Carvalho. São as do livro. As outras, de poemas, foram cantadas por João Afonso, Lurdes Guerra e Luís Pastor. Seguiram-se as que o escritor quis dizer. "Entre as boas surpresas que tenho tido na minha vida, talvez a principal tenha sido esta", declarou num discurso que quis dirigido às crianças, mas que acabou na memória. "Sou avô, mas continuo o neto de Jerónimo e de Josefa", disse. E disse ainda que "devia ter cultivado mais esta terra" antes de terminar a dizer: "Não vos digo adeus, digo-vos até à vista."

at 9:58 da manhã

O aniversário de José Saramago no "Público"

Continuo a citar a edição de 17 de Novembro do Jornal Público: "[...]Um grupo de homens mais velhos conversa calmamente. Um deles tem 82 anos e recorda-se de o escritor, quando era rapaz, passar ali as férias, na casa dos avós. Ontem, para a festa dos seus 84 anos, o nobel da Literatura regressou a essa aldeia de infância, onde nasceu, de onde saiu aos dois anos, mas aonde sempre regressou para junto desses avós, Jerónimo e Josefa, figuras inesquecíveis de uma infância que recorda agora no livro Pequenas Memórias (ver entrevista no suplemento Mil Folhas).
De repente, a agitação aumenta. No fim da rua, aparecem duas camionetas de dois andares. Durante alguns minutos, parece que Saramago não vai conseguir sair. Depois, percebe-se que, a custo, a pessoa no centro de todos os flashes das máquinas fotográficas vai avançando. "Eu não saio daqui, ele há-de passar aqui", diz uma mulher, à porta da junta. Outra aparece junto dela, eufórica: "Já lá fui, já lhe dei um beijinho e fiz-lhe uma festa na cara" - e exemplifica como foi, apertando a cara da amiga entre as mãos.
Saramago está nesse momento no meio do grupo folclórico, que dança à sua volta. E, contra todas as expectativas da mulher que optara por não sair do seu lugar, não se dirige à junta e começa a descer a rua. Todos querem cumprimentá-lo, dizer alguma coisa, há telemóveis erguidos no ar para tentar, mesmo sem conseguir ver nada, captá-lo numa foto. "Olha, ele traz a mulher", comenta uma, referindo-se à espanhola Pilar del Rio. "Claro", responde outra, "ela anda sempre com ele". Pilar e Saramago avançam, de mãos dadas, dedos entrelaçados. Alguém, vindo de trás, toca no ombro dela e diz, em espanhol: "Pilar, és uma mulher de sorte". Ela sorri.
Como uma procissão, a multidão caminha em direcção à antiga fábrica de tomate da Azinhaga, onde vai ser a festa. Há quem se queixe: "A que horas é que vou sair daqui, com sete livros que me deram para eu lhe pedir autógrafos?". Dois homens olham com nostalgia para o edifício da fábrica, encerrado há muitos anos e reaberto agora para o aniversário de Saramago - mais tarde, o presidente da junta irá agradecer a todos os que "se prontificaram a vir lavar à esfregona este edifício que não via uma vassoura desde 1990". "Finalmente a fábrica tem luz", comenta um dos homens, recordando as muitas noites que ali passou a trabalhar. Há quem esteja preocupado com outras coisas: "Isto está em directo para a televisão, não está?".
À entrada do enorme recinto, um grupo de crianças entrega um caderno com desenhos a Saramago. Ele vê com atenção, faz uma festa na cabeça de um dos rapazes e agradece. Há uma mesa comprida, cheia de comida, e travessas de arroz-doce com "Parabéns Saramago" escrito a canela. A marcha em ritmo de procissão ainda se vai prolongar mais um bocado, até o escritor conseguir chegar à zona onde estão as cadeiras e o palco improvisado.
Há música (poemas de Saramago musicados por Lurdes Guerra, Luís Pastor e João Afonso), leitura de excertos das Pequenas Memórias, prendas. Saramago comove-se ao ver a edição em espanhol do seu livro "que a Pilar acabou de traduzir na quarta-feira, às quatro da manhã - como é possível que já esteja aqui?". Quer agradecer a todos os que enchem a velha fábrica. "Não esperava o que está a acontecer. Quando a Pilar me disse que queria fazer aqui os meus anos e o lançamento, disse-lhe: "Não faças isso, já ninguém me conhece lá, o tempo passou, muitos morreram"". Estava enganado. "Se fossem menos, já teria chorado, mas são tantos que nem chorar posso".
"Devia ter cultivado mais esta terra", arrepende-se Saramago, para logo em seguida prometer que o irão ver ali muito mais do que no passado. Confessa que, aos 84 anos, ainda se sente "o neto de Jerónimo e da Josefa", pede que dêem às crianças a liberdade que os avós lhe deram a ele, e despede-se. "Não vos digo adeus, digo-vos até à vista, até à vista".

16.11.06 at 2:35 da tarde

Entrevista de José Saramago à "Visão"

Continuo a citar a Visão:“[…]Pensa na Azinhaga como se ela fosse o Pombalinho, a aldeia vizinha?Não sei como é que é agora, mas naquele tempo nós [os habitantes da Azinhaga e os do Pombalinho] não nos dávamos muito bem. Esse é um problema mais do que conhecido – terras vizinhas que, por uma razão qualquer, têm entre si uma certa rivalidade. Nós [os da Azinhaga] chamávamos-lhes os «pombaleiros».
À Azinhaga de hoje faltam as oliveiras, como escreve no livro.Onde havia milhares de olivais há, hoje, milhares de hectares de milho. Parece-me óptimo, uma vez que toda a gente precisa de milho, mas eu precisava dos meus olivais. Não digo que me cause dor, mas é uma coisa que me causa um desprazer. Simplesmente, aquela não é a minha terra. De um lado, estão os rios (o Almonda e o Tejo) e a Lezíria, mas, do outro lado, tudo desapareceu.
A sua Azinhaga é, portanto, a da memória?
Tenho por lá ainda uns primos, a quem não vejo há uma quantidade de anos e a quem, provavelmente, nem reconheceria se estivesse com eles. Não sei sequer se isto tem algum sentido porque, na verdade, eu deveria ter esquecido... Esquecemos tanta coisa. Mas o que é que aconteceu naqueles anos, com aquela terra, aquela gente, aquelas casas, aquele modo de ser e de viver, para que aquilo tudo ficasse cá dentro? Dá-me uma espécie de alegria, muito íntima, ter escrito este livro, por nele terem ficado uma quantidade de pessoas que, de outra forma, não ficariam em parte nenhuma – a minha tia Maria Elvira, o meu tio Francisco Dinis, o meu primo José Dinis.
E os Baratas, uma das famílias com quem viveu em Lisboa.
Os Baratas e aquelas aventuras precocemente eróticas com uma moça da família... Enfim, dá-me essa alegria. Ao escrever os seus nomes e ao dar a conhecer algo das suas vidas, sinto-me como se estivesse a pagar uma dívida que não contrai. Já tinha sentido o mesmo em relação ao meu irmão quando pedi a certidão de nascimento à conservatória da Golegã e, de repente, vejo, com assombro, que a data do falecimento não estava lá. Penso que é no Manual de Pintura e Caligrafia que existe uma passagem em que eu digo que todos deveríamos escrever a nossa autobiografia. Claro que o mundo estaria cheio de autobiografias que provavelmente ninguém leria... Assim, pelo menos, no que diz respeito àqueles que não o fizeram (e entre eles estão estes de quem eu acabo de falar), é certo que uns tantos milhares de pessoas vão ler os seus nomes e conhecer algo das suas vidas.
Como se estivesse a dar-lhes vida?
Mantê-los cá. No fundo, é isto. Mantê-los cá.
Porque é que foi doloroso escrever estas memórias?
Há coisas que são dolorosas e, por vezes, até me ponho a duvidar se deveria tê-las escrito... Não vou fazer um drama com a injustiça da bofetada que o meu pai me deu, mas decidi contá-lo para chamar a atenção para a necessidade que os adultos têm de compreender as crianças. Dantes havia nos jornais uma secção, que infalivelmente se chamava Cuidado com as crianças, onde apareciam notícias de coisas que tinha acontecido a miúdos como quedas e desaparecimentos.
Foi por isso que foi doloroso fazer este livro?
Não tanto por isso, mas mais por causa da chamada violência de género. Sabemos que era um problema comum, tão comum que eu até falo nisso. Este ano, só em Espanha, foram assassinadas mais de 60 mulheres. Como é que isto pode passar por ser a coisa mais natural do mundo? Claro que o meu pai não assassinou a minha mãe, mas tratou-a mal algumas vezes. E foi isso que me custou muito a pôr no papel. Um amigo comentou comigo que achava que estas coisas não se contam. Eu perguntei-lhe: mas não se contam porquê? Queres que eu, como acontece nos anúncios da televisão, invente a felicidade de todos os dias? A família é o lugar de todas as tensões e conflitos. A história – e a vida de todos nós – está cheia disso.
Como é que aquele rapaz, filho de gente humilde, neto de analfabetos, consegue sair daquele ciclo de pobreza, tornando-se no que é hoje?
Do ciclo da pobreza pode sair-se com a sorte grande.
Mas a si nunca lhe saiu a sorte grande.
Tenho tido sorte, mas a sorte grande nunca me saiu. Nunca fui uma pessoa ambiciosa, nunca tratei de estabelecer um plano para ir daqui para ali e, depois, dali para acolá. Teria talvez uns 18 anos quando disse uma frase que, na boca de um adolescente, parece não ter qualquer sentido: aquilo que tiver que ser meu às mãos me há-de vir ter. Lembro-me perfeitamente como se estivesse a dizê-lo agora. Parece uma espécie de condição fatalista, de que vieste ao mundo e, portanto, não tens que fazer nada porque aquilo que tiver que acontecer, acontece. Pões-te digamos debaixo da figueira e esperas que o figo te caia na boca quando estiver maduro e já está. Não é isso. Fiz uma quantidade de coisas na minha vida.
No sentido de aceitar o que a vida lhe dá?
No sentido de simplesmente não ter ambições. Não é nenhuma condição fatalista, antes a ideia de viver cada dia como aquilo que o dia é, de fazer cada dia aquilo que o dia me pede. E depois logo se verá o que é que sucede. Repare: aos 24 anos publico Terra do Pecado (esse livro que nunca mais li) e ainda escrevo outro livro, Clarabóia, que permaneceu inédito (quando eu já cá não estiver façam com ele aquilo que quiserem). Mas, de repente, dou-me conta de que não valia a pena. De que aquilo que eu estava a fazer era apenas seguimento de leituras anteriores. Enfim, 1938, 1939, 1949... é quase pré-história.
Foi importante ter havido um professor que chamou a atenção do seu pai, dizendo que ali estava um bom aluno?
Não sei, acho que não. Aquilo que realmente mudou alguma coisa foi a minha transformação em leitor.
E isso é posterior.
E isso vem depois, claro. Quando o director da Escola do Largo do Leão chama o meu pai para lhe dizer que o rapaz é bom aluno e que, como tal, pode fazer a 3ª e a 4ª classe juntas, ficamos todos muito contentes. Como podia eu – com 8, 9 ou 10 anos - tirar conclusões? Era apenas algo de agradável que me estava a acontecer. A minha entrada nos livros, devo-a a duas coisas.
Quais?
Nos dois anos em que frequentei o liceu, na disciplina de Português, tinha um livro muito pouco atractivo (nada atractivo mesmo) – a selecta. A selecta literária era a biblioteca de quem não tinha outra. Ali apareciam poesias, contos, trechos de romance... No fundo, era uma biblioteca num livro só. Depois, quando passei para a Escola Industrial Afonso Domingues, onde apenas espero encontrar técnicas e ciências, também tive Português e Francês. A minha pergunta é: nos programas do ensino técnico de hoje há literatura? Se calhar, não há. Devíamos aprender com algumas das coisas que antes aconteciam porque, pelo menos no meu caso, não sei o que é que seria se eu não tivesse tido estes estímulos. Só depois é que fui à procura da grande biblioteca, as Galveias, que não seria tão grande assim, mas para mim era o mundo... Antes disso, porém, ainda houve outro momento – quando eu tinha 19 anos e já não estava nas serralharias dos hospitais, um colega meu, mais velho, emprestou-me 300 escudos para eu comprar uma série de livros daquela colecção de divulgação literária publicada pela Editorial Inquérito. Ainda os tenho a todos, são como uma espécie de relíquia.
Além de uma breve referência à Guerra Civil de Espanha, não existem neste livro quaisquer referências políticas. Essa consciência veio-lhe muito mais tarde?
Eu era um garoto... Vá perguntar aos moços que agora têm 13 anos que consciência política é que eles têm. Naquela altura, a questão nem sequer se punha porque, no fundo, pode dizer-se que não havia vida política. Havia jornais censurados e, sobretudo, havia um regime bastante saloio. Basta ver as fotografias de então – os ministros de Salazar eram todos burgessos (para usar uma palavra que hoje não se usa muito, mas que tem uma capacidade de dizer extraordinária). Salazar, esse, não tinha cara de burgesso, ainda que o fosse.
Estas memórias acabam quando tem 15 anos. A vida daqui em diante não merece ser contada?
Francamente, teria vergonha de escrever uma autobiografia completa com os meus triunfos literários, sociais ou políticos. Não quer dizer que não haja grandes autobiografias, que as há, mas penso é um pouco como – a imagem é um brutal, ou talvez não... – se eu me assoasse e, depois, olhasse para o lenço para ver o que é que saiu. O meu propósito foi só este – a infância, as raízes que eu tenho, que eu continuo a ter e a alimentar. O resto? Uma autobiografia até aos 84 anos de vida? Quem é que aguentaria lê-la?
A propósito da polémica em torno de Descascando a Cebola, de Günter Grass, já disse serem hipócritas alguns dos comentários que se fizeram.
Sobre isso há um episódio recente com uma certa piada. Dei uma entrevista a um jornal brasileiro, O Estado de São Paulo, e falaram-me nisso. Eu respondi que parece que chegou a altura de eu próprio fazer a minha confissão. E contei que estive nas juventudes salazaristas, que se chamavam Mocidade Portuguesa, que era automático, que todos tinham que estar lá. E acrescentei: a única coisa que eu consegui foi nunca usar o fardamento. Rematei, dizendo que aquela foi a minha primeira vitória contra o fascismo. Então não é que o jornal tomou a sério esta coisa e, em perguntas suplementares que me mandou, tomou a minha pertença à Mocidade Portuguesa, onde inevitavelmente todos estávamos, como algo similar àquilo que aconteceu com o Günter Grass? A imprensa é um perigo. Sobretudo quando não entende aquilo que se lhe diz. E foi o que aconteceu.
As Pequenas Memórias são literatura?
O termo literatura foi inventado no século XVII, ou coisa que o valha. Antes disso, não havia literatura, havia livros. Depois, caiu-se nesta coisa de dizer que umas coisas são literatura e outras não. É evidente que existem umas tantas coisas sobre as quais temos dúvidas, uma vez que (sobretudo por causa da importância que o romance ganhou no imaginário mundial) tendemos a ver a literatura como criação ficcional. Aceitemos que As Pequenas Memórias
Nunca pensou ficcionar a Azinhaga?
Quando escrevi Levantado do Chão, quando a ideia do livro se me apresentou, o meu primeiro impulso foi o de situar o livro na Azinhaga. Mas, depois, senti imediatamente que a coisa não ia funcionar. Eu conhecia a Azinhaga demasiado bem, tinha que envolver pessoas, tinha que contar situações que poderiam depois ser reconhecíveis. Não dava. Quando o percebi, fui para o Alentejo e, embora também lá haja figuras reais, acho que foi uma boa medida não ter tomado a Azinhaga como centro.
Por conhecer demasiado bem?
Por conhecer demasiado bem e, por isso, por não me dar muita margem para a invenção. Tenho a sensação de que me sentiria prisioneiro daquelas fronteiras.
Para escrever este livro, refreou alguns episódios da sua memória?
Não. A história da questão familiar foi a única coisa em que hesitei, em que duvidei, até me decidir. Há também aquela história horrorosa do arame que, aos 3 anos, me meteram pela uretra adentro. Mas também essa senti que tinha que lá estar.
Uma curiosidade: porque é que a sua família, quando já está a viver em Lisboa, mudou tantas vezes de casa?
Não sei. O mais curioso é que, em alguns casos, não se tratava apenas de uma família. Mudavam três famílias e todas que se punham de acordo para sair daquela casa e ir para outra. É verdade que eu era pequeno demais para me aperceber de determinado número de coisas, mas não creio que fosse por não se ter pago a renda. Como era muita gente, na cozinha chegavam a estar três ou quatro mulheres a fazer o almoço ou o jantar. Aquilo era realmente complicado e, por isso, creio que a ideia sempre foi a de procurar casas mais amplas.
Parece que, em matéria de artes, àquele garoto, o cinema chega antes dos livros. Foi de facto assim?
Sim, mas, para mim, naquela altura, o cinema não era exactamente uma arte.
Era um entretenimento?
Era um entretenimento. E um entretenimento muitas vezes agradável, outras vezes absolutamente assustador. Os pesadelos acabaram com a mudança da Rua dos Cavaleiros para a Rua Fernão Lopes. Até aí, o medo vivia dentro de mim, mas acabou por passar. O cinema era aquilo – era o Salão de Lisboa, o Piolho, onde (em vez de cadeiras) só havia bancos corridos. Como havia sempre aquela coisa de «entra mais um», nós encostávamo-nos uns aos outros para que coubesse mais um. Não creio que este mundo me tenha impressionado tanto como o da literatura que descobri em Maria, a Fada dos Bosques e em A Toutinegra do Moinho.
Que eram vendidos em fascículos.
Compravam-se os fascículos e, depois, encadernava-se. No fundo, era como comprar um livro a prestações. Eram tempos, eram tempos. Eram tempos que, hoje, vistos à distância, podem parecer um pouco ridículos. Nós tínhamos pouco... Basta que eu me lembre do caixote do lixo da minha mãe e que o compare com o caixote do lixo de hoje. Agora só consumimos, consumimos loucamente. Não estou a dizer que aqueles tempos eram melhores, é evidente que não eram melhores. Quando eu nasci, a esperança de vida na minha aldeia era 33 anos. Havia velhos, mas sobretudo havia velhos que não o eram na idade, que apenas o eram na aparência. A partir dos 35/40 anos, todos eram velhos. Caíam os dentes, apareciam as rugas e os esforços físicos deixavam marcas na maneira de estar e de andar. Não era o paraíso. Mas, para uma criança, parecia o paraíso.
Mas escreve com uma certa nostalgia daqueles tempos.
Certas coisas marcam. Não creio que, no nosso país, haja muita gente que possa dizer que teve uns avós que metiam os bácoros na cama para que não morressem, por causa do frio. E se a alguém (como é o meu caso) isso aconteceu, isso forma uma pessoa. Dirão: que tem isso a ver com a formação? Tem tudo a ver com a formação.
«O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever».
Não sabia ler nem escrever, mas para mim a figura dele foi fundamental. Era um homem alto e magro, muito magro, seco de carnes. E falava pouco...
Fica a ideia que a sua mãe também endureceu muito, com a morte do seu irmão.
Creio que sim. Não é que a minha mãe não gostasse de mim, mas a morte do meu irmão fez-lhe muito mal. Chamo-lhe secura, endurecimento... Eu pedia-lhe um beijo e ela não mo dava ou, então, quando dava, era sempre um beijo de raspão. Não é que ela não me quisesse, mas a morte do meu irmão deve, de facto, tê-la endurecido. Também não é que ela que quisesse esconder os seus sentimentos, mas àquele outro filho também podia acontecer o mesmo... Só muito mais tarde é que consegui olhar para esta situação de uma maneira já mais objectiva. Naquele momento só me doía e, sobretudo, não compreendia porquê. Mas, enfim, tudo acaba por ter a sua explicação e ocupar o seu lugar.
Como vai a adaptação para cinema de Ensaio sobre a Cegueira, a cargo de Fernando Meirelles?
Está a andar. As filmagens começam em Junho do ano que vem e, por ora, é preciso preparar o casting e uma infinidade de coisas que eu nem imagino... Os exteriores serão filmados em São Paulo de uma forma que não se reconheça a cidade, e os interiores, em Toronto. Eles contam terminá-lo em Setembro.
Leu o guião?
Claro que sim. Em princípio, com um bom guião pode fazer-se um bom filme, mas não é automático. Mas estou convencido de que o Fernando Meirelles vai fazer um bom trabalho. Ele já tinha pedido autorização para fazer o filme e eu, naquela altura, disse que não porque simplesmente dizia que não a tudo quanto me pediam. O que é curioso é que esse mesmo homem a quem eu não dei o filme venha agora a ser contactado pelos produtores do filme. É demasiada coincidência, mas até mesmo as coincidências que são demasiada coincidência podem acontecer.”
também são literatura e não falemos mais no caso.

12.11.06 at 9:40 da tarde

Saramago em entrevista a Adelino Gomes

Continuo a citar a entrevista conduzida por Adelino Gomes, editada pelo jornal Público de 12 de Novembro:
"[...]
PÚBLICO - Se eu lhe dissesse, depois de ler a sua autobiografia, que foi um salazarista quando era adolescente, o que é que respondia?
JOSÉ SARAMGO - Que nunca fui salazarista.
E que esteve "ligado ao fascismo", como disse em título [na sexta-feira] o Correio da Manhã?
A ignorância tem alguma inconveniência. Quando se junta à estupidez, não há remédio. O que não consigo compreender é que não haja um director ou um chefe de redacção atentos.
Mas sabe que, antes do Correio da Manhã, foi O Estado de S. Paulo [edição do dia 4] quem o escreveu, em título?
É estúpido, evidentemente. Perguntaram o que achava [da confissão] do Günter Grass [no livro Beim Häuten der Zwiebel (Descascando a Cebola), edição em Portugal prevista para o ano que vem, de que fora voluntário nas Wafen-SS, de Hitler, aos 17 anos]. Eu estava bem disposto e respondi dizendo que tinha chegado a altura de fazer uma confissão. Eles tomaram à letra a ironia e disseram isso. No livro, conto que todos fomos da Mocidade Portuguesa. O Correio da Manhã é um eco daquilo que O Estado de S. Paulo escreveu, julgando que tinha na mão um escândalo.
No livro, assinala que, no liceu, conseguiu ficar sempre para último, na fila, e nunca usou a farda.
E escrevo, a propósito, que essa foi a minha primeira vitória contra o fascismo. É preciso ter muito cuidado no uso da ironia com jornalistas. Sobretudo tratando-se de uma resposta por escrito. Ele [o entrevistador brasileiro] não sabia nada [sobre a história da Mocidade Portuguesa].

DEIXEM O GRASS EM PAZ
Ele faz a ligação a Grass, "que confessou, na autobiografia, ter pertencido à juventude hitleriana". Por que é que, a propósito, compreende a confissão tão tardia de Grass?
Ninguém se preocupa muito que as pessoas não revelem os seus segredos. Ninguém os conta, ou conta só algum que casualmente interesse. Todos guardamos segredos. Mas parece, do ponto de vista daqueles que se escandalizaram, que não podemos guardar segredos. Então não vamos guardar segredos, todos. Dizem: "Ah!, mas uma figura pública..."
Uma figura que se assumiu como autoridade moral...
Podia alegar-se aí que Saulo [de Tarso, nome original de S. Paulo] também perseguiu os cristãos e depois se converteu. Evidentemente que teria sido melhor para Grass se o tivesse confessado desde o princípio. Mas ele usou o jogo das meias-verdades.
O que é censurável.
Mas não haverá também aí uma grande hipocrisia das pessoas que se apresentam como grandes virtuosas, honestas, límpidas de carácter, com passados impolutos? Não será antes o caso, tão ansiado por tanta gente, de descobrir os pés de barro dos gigantes que deviam ser de bronze?
Também. Por isso é que aqueles que se agigantam têm que estar preparados para isso.
Não será a história daquele homem que andava de terra em terra à espera de que o trapezista do circo caísse? Tomei partido a favor porque aquilo [que Grass fez] não apaga aquilo que foi o futuro desse tempo. Não tinha o direito de se armar em fiscal moral dos outros? Eu não quero julgar isso. Eu não condeno o Günter Grass. Devia ter sido dito? Pois devia. Mas, pelo menos, já está dito. Deixem agora o homem em paz.

O 25 DE ABRIL FOI UM FOGACHO EM QUE NÓS INGENUAMENTE ACREDITÁMOS
Sondagens recentes, em Portugal e em Espanha, indicam que há gente de cá e de lá disponível para avançar para uma união dos dois países. Independentemente do valor das sondagens, se lhe fizessem a si a pergunta, o que respondia?
Entregava um ensaio de 12 páginas que publiquei há uns 20 anos e que se chama Sobre o meu iberismo.
Pode resumir?
Eu acho que nós estamos cansados. Como portugueses, estamos cansados de viver. Se calhar, a nossa missão histórica acabou.
E agora?
E agora quê? Não sabemos. Passámos séculos de dependência: dependência da Grã-Bretanha, dependência disto, dependência daquilo. Agora somos também dependentes, o que não é vergonha nenhuma: há panelas de barro e há panelas de ferro. Mas aqui falta uma coisa que se chama brio. Cada vez mais. Somos capazes de fogachos, como o 25 de Abril foi - um fogacho em que nós ingenuamente acreditámos. Não era certo, não era possível, não era crível, mas o tempo da felicidade para Portugal chegou então. Durou, como as rosas de Malherbe, l"espace d"un matin. Acabou.
Deixou coisas boas.
Não. Não deixou nada. As coisas boas que criou, eliminou-as todas.
Os três "D" de que se falava: Democracia, Desenvolvimento, Descolonização? Todas as colónias são independentes.
Não tínhamos outro remédio se não sair de lá, homem. Estávamos simplesmente derrotados.
Salazar estava [politicamente] derrotado desde a II Guerra Mundial, toda a gente acreditava que vinha a democracia para Portugal, sopravam ventos de descolonização e os grandes impérios acolheram-nos, mas Portugal não.
Isso só prova que países democráticos não se importavam nada de conviver com países não democráticos desde que isso, de uma forma ou de outra, servisse os seus interesses. E a história continua, veja-se o caso da China.
Foi preciso jovens militares virem acertar o relógio da História, que tinha os ponteiros atrasados em Portugal.
Talvez. Mas nós estávamos na Europa, numa comunidade como esta não era possível manter uma ditadura, mesmo que ela fosse ou se tornasse soft. Acabaríamos por fazer aquilo que a Espanha fez, mas, para isso, também precisou que morresse o ditador: uma transição.
Influenciada por nós, como aconteceu, aliás, noutros países do Mundo.
Há dias Freitas do Amaral contou a história de quando chamou os embaixadores dos países do Conselho de Segurança a quem comunicou estar a pensar reformá-lo. Resposta de todos eles: "Nem pense nisso. Nós vetamos". O 25 de Abril é uma data, apenas. Converteram-no numa data, nada mais. Já o disse em público e repito: eu já não celebro o 25 de Abril. Há um ante-25 de Abril que eu celebraria, se fosse disso que se tratasse, que é justamente o movimento que levou ao 25 de Abril. Feito por esses militares que a democracia liquidou, na maior parte dos casos, passando-os à reforma, perseguindo-os. A esses, sim, a esses tiro eu o meu chapéu. Mas há o tempo que vem depois. Muitos pensaram que tinha chegado a hora de mudar o país, que era de uma certa maneira mudar a História ou ter, sobre ela, outra visão. Não vale a pena entrar nos excessos, na reforma agrária, nas nacionalizações, mas isso é que eram consequências do 25 de Abril.

NÃO ACEITO QUE SE DIGA QUE FICÁMOS COM A DEMOCRACIA
Volto aos três "D".
Não aceito que se diga que ficámos com a Democracia.
E também com a independência das colónias; e com algum desenvolvimento...
O desenvolvimento em Espanha, nos anos 60, ocorreu sob o franquismo. Não foi necessário uma revolução. A China não é já uma ameaça para os EUA? [mostra uma entrevista que deu ao Nouvel Observateur, quando foi lançar a Paris o Ensaio sobre a Lucidez].
Nessa entrevista diz: não há democracia, mas um poder que está por cima dos governantes em quem votámos e que não são, afinal, quem decide. A pergunta que dá vontade de lhe dirigir, ao senhor, um céptico que aderiu a uma ideologia que transportava o optimismo histórico é: o que fazer, então?
O que fazer? Temos um cerimonial democrático cada vez mais falto de vergonha: campanhas eleitorais que custam rios de dinheiro, subsidiadas muitas vezes não se sabe por quem ou demasiado se sabe por quem; promessas que se sabe de antemão não serão cumpridas; processos cosméticos do género de termos um Governo de um partido socialista mas não um Governo socialista. Porque, aqui e em qualquer parte do Mundo, o partido no Governo vai poder chamar-se o que quiser porque vai ter que fazer exactamente a mesma política. Uma comédia de enganos. Não servimos para nada mais senão para homologar coisas que não têm nada que ver connosco porque não podemos influir nelas. Aristóteles, na Política, dizia que, num Governo democrático bem entendido, o governo da Polis, os povos deviam estar em maioria, pois são a maioria.
É esse o princípio do sistema representativo...
No livro A Morgadinha dos Canaviais, Júlio Diniz, um escritor suave, descreve aquela situação dos votos que se rasgam e são substituídos à última hora para eleger não uma pessoa mas a outra. Há coisas que deviam voltar a ser lidas.
E, no entanto, é extraordinário o avanço nesse campo desde essa altura, entre nós.
Mas quem é que não avançou nestes dois séculos? Seremos excepção? O extraordinário seria não termos avançado. Eu talvez seja demasiado céptico, mas você é demasiado optimista.

É PRECISO MUDARMOS A VIDA SE QUEREMOS MUDAR DE VIDA
O seu discurso quer mostrar-nos que a banalidade está instalada no mundo e que não há nada a fazer. Mas ela é mudável. Este seu livro é a prova viva de que um homem que nasceu numa aldeia entre gente pobre e analfabeta pode libertar-se daquilo que parece ser o seu destino.
Ela é mudável, de acordo. Mas então mudemo-la! O que eu ando a dizer já há tempos é que é preciso mudarmos a vida se queremos mudar de vida. E isto aplica-se a tudo.
Esclareça-me qual o 25 de Abril que valia a pena celebrar?
Um 25 de Abril que realmente tivesse mudado a mentalidade dos portugueses. Que tivesse feito de nós pessoas capazes de construir. Que, dentro de nós, eliminássemos essa espécie de fatalidade de que, desde o D. Sebastião, temos sempre que depender de alguém que nos ajude a atravessar a rua.
Por exemplo?
Transformações como as nacionalizações. Agora, até para obter fundos para pagar dívidas se privatiza e se vende. Não foi isto que nós quisemos. Já sabemos que não há independência, que a soberania é relativa, que a autonomia é consoante os interesses dos vizinhos, mas podíamos ser outra coisa e não somos. Almeida Garrett escreveu: "A terra é pequena. E a gente que nela vive também não é grande".
Alguma vez se interrogou sobre se, com esse 25 de Abril com que sonhava, não estaríamos hoje - tendo em conta o que se passou noutras latitudes - num 25 de Abril completamente pervertido, pior e, seguramente, com menos liberdade?
Sou suficientemente céptico para lhe responder assim: considerando a palavra "não" a mais importante do vocabulário, posso dizer que uma revolução é um "não". Mas sei, perfeitamente, que, feita a revolução, o "sim" recuperará posições pouco a pouco. Tanto faz num sistema capitalista ou socialista. O sistema ensina hipocrisia a partir dos bancos da escola. Não mudaremos a vida, se não mudarmos de vida."

Ainda com assinatura de Adelino Gomes:

"O HOMEM A QUEM ROUBARAM AS OLIVEIRAS DA INFÂNCIA
"Vamos! Vamos!", diz, poucos minutos após a primeira paragem.
Foi ele quem chamou a atenção para a curva do rio. Um carro desviara-se da estrada principal. Preparamo-nos para esclarecer as razões da inusitada incursão de um casal entre uma e a outra estreita margens, mas o escritor Nobel mostra-se impaciente. Tem pressa de chegar à Azinhaga, a terra onde nasceu.
O que vê, porém, à medida que avança o carro - no qual viajam, além dele próprio, José Saramago, a mulher, Pilar, o fotógrafo espanhol Jose Manuel Navia e este jornalista do PÚBLICO - deixa-o inconformado.
- Aqui havia oliveiras - começa por constatar. - Roubaram-me as minhas oliveiras! - protesta, por várias vezes, à medida que desfila aos nossos olhos a interminável, monótona paisagem, nua de árvores.
- Olhem para estes campos [de milho transgénico]. Aceitaram as indemnizações que a CEE ofereceu e agora temos isto, tudo igual...
Iniciámos a peregrinação a pé pela aldeia. Quase nenhuma emoção perante o lugar em que outrora se ergueu a casa natal. Está guardada para mais à frente, no que resta da casa que foi dos avós maternos.
Pilar acha que deve comprar o espaço. Não parece ser essa a sua ideia
Desfia recordações para o fotógrafo espanhol, que pretende ilustrar, com imagens desta peregrinação, o texto que a revista de domingo do El Pais lhe vai dedicar, na série com grandes escritores mundiais deste Verão de 2001.
Os locais gostam de lembrar que a aldeia, administrativamente situada no concelho da Golegã, tem foral desde D. Sancho II e que é a mesma a que, antes da fundação de Portugal, chamavam Santa Maria do Almonda. Características edificações na rua principal constituem a prova de que ali se ergueram, a partir do século XII, palácios, solares, igrejas e capelas, o mesmo será dizer, "ali se foi construindo um país".
A Azinhaga foi, nos célebres concursos salazaristas de António Ferro, a "aldeia mais portuguesa do Ribatejo". O contacto com os toiros, nas fainas do campo, fez da raça de maiorais desta terra "de lezírias e espargais", pelo saber, os mais famosos campinos das terras da Borda d"Água, diz uma nota do rancho folclórico "Os Campinos da Azinhaga", lida durante a breve paragem para almoço.
Não foi para estas divagações, contudo, que José Saramago se deslocou de Lisboa. Sobe, e nós com ele, ao campanário da igreja. Dá um beijo a uma prima, encontrada na rua. Ruma ao Paul do Boquilobo, para onde gostava de ir, em longas viagens de dias, e para onde - torna-se claro nos gestos, nas recordações, na insistência em ir até onde o carro pode chegar - não se importava nada de partir agora mesmo em nova aventura. Boquilobo, oferecida, depois da crise de 1385 por D. João I a João das Regras com a legenda "Melhor lhe dera se melhor houvera".
Passados cinco anos, estas recordações tomam a forma de livro - As Pequenas Memórias (Editorial Caminho) - que aqui mesmo vai ser lançado, em cerimónia de ressonância internacional, na próxima quinta-feira, 16, num regresso simbólico aos lugares da infância e adolescência do escritor, na aldeia ribatejana.
Casas, oliveiras, arbustos, dois rios, um pântano. Que importa que deles só restem os dois últimos? Que tenha desaparecido sob um monte de escombros a casa que foi a pobríssima morada dos avós maternos de quem os leitores já sabem os nomes, desde o discurso de aceitação do Nobel da literatura, em 1998 (Josefa e Jerónimo se chamam, este último, analfabeto, "o mais sábio dos homens" que Saramago conheceu)? Que importam os estragos do prémio da CEE sobre os olivais desaparecidos?
A cada instante, José levantará as paredes da casa branca, plantará as oliveiras, fechará o postigo da porta e a cancela do quintal e dirá: "Avó, vou por aí dar uma volta", e ouvi-la-á responder: "Vai, vai", meterá "um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge", pegará num pau para qualquer mau encontro canino e partirá para uma das quatro partes em que o universo se dividia então para a criança "melancólica", para o adolescente "contemplativo e não raro triste" que era ele: o rio, "os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado", a mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o Tejo, um pouco à frente da confluência com o Almonda, ou o Paul do Boquilobo, "um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso".
Tudo nítido setenta anos depois - paisagem, gentes, afectos -, numa revisitação através do "poder reconstrutor da memória". E da literatura. Adelino Gomes".

31.10.06 at 10:14 da manhã

Memórias de Saramago

Aqui continua o texto de Ana Dias Ferreira: "[...]Na Feira do Livro de Frankfurt, que dita as tendências literárias internacionais, foram a grande aposta do ano passado, juntamente com as biografias. E em Portugal?
"Temos alguns títulos de género memorialístico, embora noutros países haja muito mais", diz Zeferino Coelho, editor da Caminho e coleccionador deste tipo de livros - tem mais de 800, datados. "Desde que começámos a escrever sobre nós." "Costumo dar o exemplo de Inglaterra, onde não há inglês que se preze que não escreva as suas próprias memórias", continua. "Aqui não é tanto assim, mas agora estão a aparecer muitas coisas." Estamos a mudar?
Como em tudo, há um antes e um depois. Nas memórias, haverá um antes "Bilhete de Identidade" de Maria Filomena Mónica e um depois. Lançado em Novembro do ano passado pela Alêtheia, o livro foi escrito pela socióloga (doutorada em Oxford) à boa maneira inglesa - vivo, directo, com nomes em vez de iniciais, sem esconder nada - e já vendeu mais de 35 mil exemplares. A editora conta chegar aos 40 mil antes do Natal. Um caso de sucesso num género que então estava bastante adormecido, e que, apesar de ter gerado uma enorme discussão acerca da exposição da intimidade (juntamente com outro livro lançado então pela Dom Quixote, "D"Este Viver aqui Neste Papel Descripto - Cartas da Guerra", a compilação dos aerogramas que António Lobo Antunes enviou à mulher enquanto esteve na guerra colonial), pode explicar, em parte, a moda das memórias e das autobiografias. E a maior abertura a livros em que se abandonam mitos e tabus.

Novidades
Se há uma moda, tem de haver várias novidades. E há. Acabadas de sair temos as "Quase Memórias" de Almeida Santos (Casa das Letras/Círculo de Leitores), mil páginas repartidas por dois volumes que recuam 30 anos, até ao período da descolonização e cuja primeira edição (Casa das Letras), do primeiro volume, esgotou em 15 dias; "A História de Deus Comigo", do padre António Vaz Pinto (uma nova aposta da Alêtheia que parte com uma primeira edição de 7500 exemplares); "Na Estrada", do jornalista Homero Serpa (Caminho); "Memórias de Um Guerrilheiro", de Alcides Sakala, um dos dirigentes da UNITA (Dom Quixote), "Fotopoesia", de Isabel Ruth (uma espécie de fotobiografia escrita pela própria actriz em poemas, da Guerra & Paz) e "Memórias de Um Rústico Erudito", de Raul Miguel Rosado Fernandes (Cotovia).
Por lançar já no próximo mês estão "As Pequenas Memórias", de Saramago, e "Livro do Meio - Romance Epistolar" (também da Caminho), escrito entre Maria Velho da Costa e Armando Silva Carvalho sob a forma de cartas e que junta uma escrita diarística e evocativa, com as memórias da infância de cada escritor. Um livro que promete bastante frontalidade e, como tal, algumas reacções (ver texto ao lado). Ainda em Novembro, José António Saraiva vai publicar, pela Oficina do Livro, o seu segundo livro de memórias, "Confissões - Os Últimos Anos no Expresso, o Nascer do Sol e Conversas à Mesa com Políticos" (o primeiro chamava-se "Confissões de Um Director de Jornal"). A Cotovia vai lançar, já em Dezembro, as memórias de Jorge Silva Melo, "Século Passado" e, também nessa altura, Carlos Castro vai editar a sua autobiografia, "Solidão Povoada".
Ainda por confirmar, há interesse das Edições Asa em publicar para o ano o livro autobiográfico da cantora Mísia (sai agora em França pela editora Gawsewitch Editions), constituído por uma série de entrevistas realizadas pelo jornalista francês Hervé Pons ao longo das quais a fadista percorre a sua vida e faz um conjunto de confissões e que deverá chamar-se "Fados e Pecados, Seis Entrevistas Parisienses". A Âmbar está também a preparar, para o próximo ano, a edição de um livro de memórias de "alguém que esteve no centro de acontecimentos políticos e que decidiu contar a sua experiência, sem esconder o nome de todos os intervenientes". É tudo o que pode desvendar, para já, Nélson de Matos, responsável da editora.
A Alêtheia vai publicar ainda o livro de Santana Lopes sobre a sua passagem por São Bento, um título que Zita Seabra, editora, distingue de um livro de memórias - "É muito usual na tradição anglo-saxónica ter um político que foi primeiro-ministro a escrever sobre aquilo que fez no seu mandato" -, mas que promete alguma agitação. Santana Lopes substituiu Durão Barroso, quando este foi convidado para presidente da Comissão Europeia e não terminou o mandato por dissolução do Parlamento pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio, quatro meses depois de ter chegado a São Bento.
Para Manuel Alberto Valente, editor e director-geral da Asa, este é porventura um fenómeno de natureza editorial: os editores procuram quem publique memórias ou são mais receptivos quando as recebem, por entenderem que o público as quer ler. "Nos últimos anos houve uma grande alteração da vida editorial", explica. "Há dez ou 20 anos, o centro da vida editorial era o autor, e procurava-se publicar um Hemingway, um Camus, um Joyce", continua. "Hoje o centro já não é o autor, é o leitor. O editor pergunta-se "O que é que o leitor quer ler?" E a questão das memórias e das autobiografias pode passar por aí."
Talvez por isso as editoras que apostam neste género não dizem quem gostariam que publicasse memórias. E, apesar de revelarem que a maioria das memórias publicadas parte da vontade dos autores, há certamente alguma pressão da sua parte no processo. Adivinham-se assim, no futuro, mais novidades. A Alêtheia, a Casa das Letras e a Oficina do Livro são, a este respeito, editoras a ter em atenção.

Um género com tradição "intermitente"
Uma espécie de "tradição intermitente", que não é muito marcada mas também não se pode dizer que não existe, é o balanço possível quando falamos das memórias escritas em português. Segundo os editores, é um erro dizer que não tínhamos uma tradição de memórias até hoje, tendo boas memórias que datam do século XVIII e XIX, "como as do marquês do Lavradio, da condessa de Rio Maior (em cartas) ou as de Raul Brandão" (já no século XX), recorda Carlos da Veiga Ferreira, da Teorema. Mas também não podemos dizer que é uma tradição forte, que as pessoas identifiquem. E é fácil constatar que, desde há uns anos, caíra em desuso. Essa variação é explicável, considera Zeferino Coelho. Segundo o editor da Caminho, a escrita de livros memorialísticos concentra-se em períodos específicos: "Pelas coisas que tenho, surge-me esta reflexão: quando há períodos em que há um cataclismo social qualquer, a seguir proliferam as memórias." Exemplos: o grande terramoto de Lisboa (1755); as invasões francesas seguidas da revolução liberal de 1820 e da guerra civil; a implantação da República (1910); o 25 de Abril. "Dá ideia que estas convulsões sociais abalam as pessoas de tal forma que elas têm necessidade de se explicar a si próprias, de se explicar aos outros, de dizerem que estiveram lá."
Não será só o 25 de Abril a explicar a nova onda de memórias e autobiografias, embora a riqueza dos anos 70 ajude a justificar que uma geração hoje com sessentas e oitentas tenha tanto para contar. Para Alexandre Manuel, da Casa das Letras, há outras causas: "A multiplicação dos protagonistas, designadamente no campo político e social, e o fim de vários mitos e tabus. Além, claro está, dos exemplos que nos chegam de fora: está na moda o memorialismo."
Do lado do autor há a necessidade de contar, fixar e partilhar a sua história. Ou dar a sua versão, o seu testemunho, no caso de acontecimentos políticos marcantes, como faz Almeida Santos nas suas "Quase Memórias", a propósito da descolonização. Do lado do leitor, o voyeurismo, o querer espreitar a vida de alguém. Mas não só. Há também o interesse de ter acesso a um documento real, supostamente factual e que faz o retrato de uma época através de um sujeito. Ou ainda o procurar exemplos, vendo como determinada personalidade guiou a sua vida ou se desembaraçou das adversidades.
"Os diários permitem mais esse voyeurismo, porque, em princípio, são mais verdadeiros e revelam mais a alma de quem escreve", observa Zeferino Coelho. "Mas as memórias, mesmo quando são fabricadas para dar uma certa imagem, quando são bem lidas revelam muito acerca das pessoas."
E o que tem de ter um livro de memórias para ser considerado bom? "Tem de contar uma vida rica", diz Zita Seabra. Isso é consensual. Não basta ser uma anotação do que se fez no dia, uma espécie de "acordei", "saí", "fui", "vi", "disse" "voltei". Isso não interessa, a "historinha", como lhe chamava Alexandre O"Neill. Um bom livro de memórias tem de ser mais profundo. Honesto. Transparente. Sério.
"Tem que ser verdadeiro, ou pelo menos verídico, mas também amplo e aberto", diz Zeferino Coelho. "Umas memórias interessantes são aquelas em que o autor consegue mostrar-se, expor-se, mas com uma amplitude suficiente para que nós o vejamos no meio dos outros, vejamos tudo o resto à sua volta e possamos ter, em relação ao livro, uma capacidade de crítica. Porque tudo se pode contar. Depende é da maneira como se conta."
É curioso que, num género que é necessariamente egocêntrico, seja tão sublinhada a importância do outro, do leitor. "Necessariamente, é um livro que escreve memórias pessoais", considera Manuel Alberto Valente. "Mas se nelas transparecer uma reflexão sobre o mundo, sobre livros, sobre arte, sobre a vida, sobre a essência do ser humano que possa interessar ao outro, aí sim, as memórias são boas."
Hoje, é fácil constatar que parte do sucesso de umas memórias (para lá, obviamente, da importância do autor) está nas revelações. Basta pensar nas de Günter Grass, lançadas em Setembro, onde o Nobel da Literatura de 1999 confessa ter-se alistado nas Waffen-SS aos 17 anos. Certamente não só por isso, mas muito por isso, a autobiografia vendeu mais de 200 mil exemplares na Alemanha no espaço de um mês. O livro, intitulado "Descascando a Cebola", vai ser publicado para o ano em Portugal, na Casa das Letras.

Contar "agora ou nunca"
Para recordar, é preciso que haja um passado, e é uma característica das memórias serem escritas num momento distante dos acontecimentos que se estão a contar - por exemplo, escrever em 2006 o que aconteceu em 1965 (e até antes), como faz o padre António Vaz Pinto na sua "História de Deus Comigo". Ao mesmo tempo, há também da parte de alguns autores a intuição de que, tendo uma história para partilhar, têm de o fazer agora, com perigo de não terem outra oportunidade no futuro. Como José Saramago, que revelou em entrevista ao "El País" que a vontade de escrever as memórias da sua infância o acompanhava há mais de 20 anos e era "agora ou nunca".
Para lá de permitir uma maior segurança e serenidade, ao ponto de se poder falar de interditos, a distância é uma condição essencial do próprio acto da escrita memorialística. É preciso "digerir" os acontecimentos. "Tem de haver uma certa consolidação para que seja possível dizer "foi assim"", aponta Zeferino Coelho. "A história precisa de correr, nos seus traços essenciais, para ser possível contá-la. Quando está a decorrer, é possível vivê-la, mas não é possível contá-la."
O tempo, afinal, não traz só consolidação. À coragem, que já é mais ou menos inata, junta-se a morte de pessoas que poderiam ficar melindradas com algumas revelações e uma maior base de poder, que se foi reunindo ao longo da vida. "A partir de uma determinada idade, as pessoas sentem que já não têm nada a perder, e portanto estão completamente à vontade para dizer aquilo que lhes apetecer", afirma Manuel Valente. Já não têm nada a provar.
Um ano corrido, Maria Filomena Mónica ainda recebe reacções ao seu "Bilhete de Identidade". Boas e más, sinal de que quem lê as suas memórias não lhes consegue ficar indiferente. E uma prova de que, afinal, tinha razão em ter medo de as publicar. "Comecei a escrever porque me apeteceu, sem pensar para que é que aquilo ia servir", recorda. "Como lia muitas memórias, a partir de certa altura perguntei-me: "Mas por que é que eu não hei-de publicar o que estou a escrever? Se tivesse nascido nos Estados Unidos ou em Inglaterra, tenho a certeza que publicava, e só por ter nascido em Portugal é que tenho receio?" Receio? "Por serem muito intimistas", diz. Hoje, sabe que também por ser mulher, e isso só percebeu depois. "Mulheres da minha geração falarem dos maridos e dos namorados dum ponto de vista afectivo-sexual era tabu", comenta a investigadora do Instituto de Ciências Sociais, que nunca pensou que isso originasse uma divisão na forma de entender o livro. "Os homens lêem com um olhar perverso-picante, as mulheres de todo." Muitas, de várias idades e classes sociais, ainda se lhe dirigem para dizer: "Eu também sinto (ou já senti) isto.""
Necessariamente narcisista - porque todas as memórias o são -, "Bilhete de Identidade" acaba por funcionar também como um retrato do Portugal salazarista e de uma família católica. Mas ao falar tão abertamente de sexo, religião, adultério e classe social, e ao envolver pessoas vivas sem qualquer censura, é um livro sem consensos - amado ou odiado. Para Filomena Mónica foi "libertador", embora nunca tenha sido escrito com esse propósito. Por decisão pessoal, pára em 1976, aos 33 anos da socióloga. Quem espera um segundo volume terá de continuar a esperar. Para já, a investigadora não diz que não, mas quer voltar a dedicar-se à vida académica e "deixar passar o tempo". Vê-se pelas vendas que ainda não deixou de ser o tempo deste "Bilhete de Identidade".
Fica, pelo menos, uma lição: publicando um livro de memórias correm-se riscos. Não publicando há uma certeza: há muito de uma vida que se perde.


Novas Memórias

Regresso à infância de Saramago
Saramago confessou que era sua vontade escrever as memórias de infância desde há 20 anos, e era "agora ou nunca". A 16 de Novembro, quando completa 84 anos, é apresentado na aldeia natal de Azinhaga o resultado dessa vontade. São 150 páginas de evocação, onde revela o que foi a vida do rapaz (dos quatro aos 15 anos) que, aos 75, se tornaria Prémio Nobel da Literatura. Numa entrevista ao jornal espanhol "El País", o escritor falou sobre "As Pequenas Memórias", dizendo por que as escreveu: "Queria que os leitores soubessem de onde saiu o homem que sou." O livro acabaria por se revelar doloroso, uma vez que obrigou o escritor a voltar a "recordações familiares que não são agradáveis" e a "coisas que uma criança não devia ter visto".
Sem seguir uma ordem cronológica, como desvenda o seu editor, Zeferino Coelho, da Caminho, "As Pequenas Memórias" vão percorrendo recordações à medida que elas vão surgindo para o escritor. Nelas se contam vários episódios, como, por exemplo, o de uma caminhada com o tio desde a aldeia ribatejana até à feira de Santarém, a paragem numa quinta, as sensações de uma pernoita num estábulo. "Páginas muito belas sobre sentimentos básicos nossos", diz Zeferino Coelho.

"O Livro do Meio": sinceridade a duas mãos
Não é um livro de memórias, não é um diário, mas o subtítulo - "Romance Epistolar" - também não diz tudo. O "Livro do Meio" nasceu de vários encontros entre Maria Velho da Costa e Armando Silva Carvalho, dois escritores cúmplices que resolveram falar de si e do mundo actual através de cartas. Escritas entre Fevereiro e Julho deste ano, essas cartas não foram enviadas por correio - eram entregues em mão pelos dois amigos, a cada fim-de-semana, como revela Armando Silva Carvalho. Lidas em voz alta, cada um levava a que lhe era destinada para casa, e assim, semana após semana, com cada resposta foi nascendo este livro, que chega no próximo mês às livrarias, pela Caminho. Um livro que procura recuperar "dois géneros caídos em desuso, como a memorialística e a diarística", diz o escritor.
As memórias estão lá quando se recordam da infância, cada um de origens muito diferentes - Armando Silva Carvalho filho de um pequeno comerciante da zona oeste, Maria Velho da Costa de uma família com pretensões aristocráticas. Essa parte do livro dizem ter sido a mais dolorosa, uma vez que implicou "dar voz a um período das [suas] vidas que já estava adormecido", conta o autor.
Há também o lado diarístico, na referência aos jornais que ambos liam e comentavam. É nesse lado que mais assumem as suas posições e, diz Armando Silva Carvalho, as desilusões. E onde não se coíbem de falar abertamente sobre coisas e pessoas que estão agora na cena mediática. "Uma atitude de sinceridade" que revela algum desencanto e promete gerar algumas reacções.

As "Confissões" de José António Saraiva
São cerca de 450 páginas onde o arquitecto e director do "Sol" se permite falar, com alguma intimidade, dos últimos dez anos que passou à frente do semanário "Expresso" (no total foram 20) e do arranque do "Sol", que agora dirige. Em "Confissões - Os Últimos Anos no Expresso, o Nascer do Sol e Conversas à Mesa com Políticos" (Oficina do Livro), José António Saraiva promete algumas revelações porque, como diz, "é uma característica das memórias não se contar propriamente o que já foi tornado público, mas revelar os bastidores e o que foram os acontecimentos em primeira mão". Como dá a entender o subtítulo, aí poderemos encontrar as razões que levaram ao seu afastamento do semanário de Francisco Pinto Balsemão e todo o processo de fundação de um novo jornal, assim como várias conversas que o comentador teve com diversos políticos.
Ao contrário do seu primeiro volume de memórias, que recuava à infância e continha vários episódios passados com o pai, António José Saraiva, este é um livro de acontecimentos mais recentes e que foi iniciado no próprio dia em que o arquitecto deixou o "Expresso". "Congratulo-me de ter começado a escrever logo no próprio dia em que saí. O facto de ter as coisas frescas dá mais autenticidade", diz o autor.
As memórias terminam a 16 de Setembro, dia em que o "Sol" chegou pela primeira vez às bancas.

De que é feito Jorge Silva Melo
Sai em Novembro mas chama-se "Século Passado". As memórias de Jorge Silva Melo (edição Livros Cotovia) reúnem uma selecção de vários dos textos, críticas e crónicas que o actor foi reunindo ao longo da vida, tudo "ligado por uma espécie de conversa ininterrupta", como avança o autor. Nessa construção - 500 páginas entre a compilação e a autobiografia - Jorge Silva Melo vai introduzindo o que descobriu, por onde andou, o que leu, o que viu. Com várias fotografias que acompanham o percurso do director dos Artistas Unidos desde a sua formação é, curiosamente, um livro com pouca coisa de teatro. "É uma autobiografia com as coisas que me fizeram, mais do que com as coisas que fiz", resume Jorge Silva Melo. Essas ficam, talvez, para um outro livro.

O desencanto de Rosado Fernandes
Quando tanto se fala de politicamente correcto, Raul Miguel Rosado Fernandes escreve um livro no sentido contrário: incorrecto, céptico, crítico, irreverente. A Cotovia apresenta-o como um "retrato realista da alma pouco recomendável da política" e é um livro que Rosado Fernandes, "conservador liberal", diz que foi escrito com um desencanto que "já é antigo".
Em "Memórias de Um Rústico Erudito - Viagem à Volta de Lentes, Terras e Políticos" (Livros Cotovia, o professor não se inibe de lançar farpas e críticas em vários sentidos: a jornalistas, advogados, políticos, universidades (que conhece bem por ser professor catedrático e ter sido reitor da Universidade de Lisboa, entre 1979 e 1983). Críticas que são mais abundantes nos capítulos posteriores ao 25 de Abril.
Escrito um pouco por "descargo de consciência", estas memórias, "mesmo um pouco violentas nas críticas", como admite o autor, são também o testemunho de um século inteiro, através da história dos seus antepassados, latifundiários do Alentejo. "É a parte romântica do livro", diz Rosado Fernandes.
Nelas se incluem também as suas "aventuras" em Bruxelas, enquanto deputado do Parlamento Europeu, a sua experiência na Assembleia da República (para a qual foi eleito pelo CDS-PP), a fundação da CAP (Confederação dos Agricultores de Portugal), as suas viagens e alguns "episódios pitorescos".
".

28.11.05 at 4:29 da tarde

Saramago no jornal britânico "The Guardian"

Aqui fica transcrito o texto deste endereço:

"Speaking volumes

From poetry to prose, fact to fiction, our critics and guest writers name their favourite books of the year

Saturday November 26, 2005

Chimamanda Ngozi Adichie

Everything Good Will Come (Arris Books) by Sefi Alta is full of irreverence and intelligence. There is a humane quality about Saturday (Cape) that I, irony-weary, loved. Ian McEwan so masterfully handles the elements I most enjoy about fiction: I cared for his characters. And I enjoyed Uzodinma Iweala's Beasts of No Nation (John Murray). He has invented his own language - part Nigerian pidgin, part Iwealaese - that propels and liberates the story.

Kate Atkinson

Margaret Atwood's Oryx and Crake (Virago) is her best book; a night- marish but very real vision of the future that continues to haunt me. I expected Philip Roth's The Plot Against America (Vintage), given the book's premise - a fascist government coming to power in America in the 1940s - to be much more horrific but I think its power is in the subtlety of Roth's approach. James Reasoner's Texas Wind (Dark Tail Publications), out of print since it was published in 1980, has long held a kind of cult status. Short and simple; it's the perfect private detective novel. Ali Smith's The Accidental (Hamish Hamilton) is definitely literature. She is one of the few contemporary writers ploughing a genuinely modernist furrow.

John Banville

Georges Simenon is a late discovery of mine - not the Maigret policiers, but what he called his romans durs, his serious ones. Tropic Moon, translated by Marc Romano (New York Review Books), is a dark masterpiece, darker even than Heart of Darkness, set in Gabon in the 1930s: violent, sexy and frightening. Another essay in noir, Hilary Mantel's beautifully written novel Beyond Black (Harper Perennial), should have been on the Man Booker shortlist. The Power of Delight-A Lifetime in Literature: Essays 1962-2002 by John Bayley (Duckworth), is old-fashioned, anti-theoretical criticism at its best. And for the studied effrontery of it, John Carey's What Good Are the Arts? (Faber): wrong-headed, self-contradictory and brilliant.

Beryl Bainbridge

Dr Johnson's Dictionary, by Henry Hitchings (John Murray). None of us would know how to describe, feel or convey what we meant unless we had a knowledge of the right word to use. This book is the riveting account of how Dr Johnson, an 18th-century man, blind in one eye, terrified of death and convinced he was lazy, compiled what is considered to be the definitive dictionary of the English language. Hitchings brings Johnson's humanity and the massive task he undertook to touchable life. A Jealous Ghost by AN Wilson (Hutchinson) is a convincing, compelling and icy reworking of Henry James's The Turn of the Screw, in which Sallie, an American girl obsessed by the subject of her PHD thesis, quits university to take on the job of temporary nanny in an English country house. Sallie is so manipulated by words, so deluded by her own emotional fantasies that she interferes with James's original narrative and screws it into terrifying reality. When I Grow Up by Bernice Rubens (Little Brown) was published shortly after her death. This is a memoir of a prolific and important writer and Booker prize winner. Born into a musical family in Cardiff, the third offspring of emigrant Jewish parents, she gives a moving, truthful and often abrasive account of her life as a child, wife and mother, maker of documentaries and her emergence as a novelist. This is a "must" read for those would-be authors who puzzle as to what makes a novelist.

Julian Barnes

Joan Didion's The Year of Magical Thinking (Fourth Estate) is in fact a year of lucid and rational thinking, about grief and mourning and feared loss; this account of a husband's death and a daughter's grave illness is the more moving for not trying to seem so. Alex Danchev's Georges Braque: A Life (Hamish Hamilton, £35, for which we should get more and better illustrations) is the first biography of the great Cubist, a vivid and cogent portrayal of a grave and moral man.

Michael Berkeley

I love the musical syntax that informs Anne Stevenson's Poems 1955 -2005 (Bloodaxe) but in fiction I have been steeped in European writing: Stefan Zweig's Twilight Moonbeam Alley and other short stories (Pushkin Press); and Raymond Radiguet's masterpiece, The Devil in the Flesh (Marion Boyars), about the delicate and sensual love between a boy of 16 and a woman whose husband is away at the front in the first world war, written before Radiguet's untimely death at the age of 20. Having been intoxicated by Sandor Marai's Embers (Penguin), I am currently devouring with delight his Conversations in Bolzano (Penguin).

Ian Bostridge

Tony Judt's Postwar (Heinemann) is a deft and gripping account of Europe's history after 1945 - political, ideological and cultural, though with the strange (or perhaps significant) absence of so-called "classical" music. To correct that fashionable emphasis read Richard Taruskin's five-volume, one man Oxford History of Western Music (Oxford University Press), one of the most brilliant exercises in cultural history tout court produced since the end of the second world war.

William Boyd

Anthony Burgess took strenuous efforts to lay false trails for future biographers, but he has been thwarted by Andrew Biswell's mind-boggling diligence. The Real Life of Anthony Burgess (Picador) is the biography all Burgess fans have been waiting for and which the great man himself richly deserves: revelatory, scrupulous, sincere and fascinating. David Harsent's carefully harrowing collection of poems Legion (Faber) is both a disturbing distillation of and profound meditation on the vicious wars we have witnessed recently. Poems that move and make you think.

AS Byatt

I reviewed David Constantine's wonderful stories, Under the Dam (Comma Poetry), for the Guardian, and am still thinking about the quality of the writing. Hilary Mantel's Beyond Black is indeed beyond black, a terrible and swirling horror-comedy about a very fat medium on the perimeter of the M25, haunted by mean and nasty spirits, veering between damnation and the trivial. Reza Aslan's No God but God (Heinemann) is just the history of Islam I needed, judicious and truly illuminating. And I was enthralled by Guy Deutscher's The Unfolding of Language (Heinemann), a history of how words came to take the forms they do, and therefore a history of the forms of the human mind.

Simon Callow

I was greatly taken this year by three books which showed their subjects in entirely new light: Jane Glover's irresistible Mozart's Women (Macmillan) which, by placing Mozart in a domestic context gave us, for the first time in my experience, the man, at the same time entirely rehabilitating his remarkable wife, Constanze and his scarcely less fascinating mother, Maria Anna. John Pemble's Shakespeare Goes to Paris (Hambledon & London) proved as revealing about Shakespeare as about French responses to him, while Philip Hoare's far-ranging and superbly written England's Lost Eden (Fourth Estate) probed Victorian millenarianism, finding echoes as far back as the death of William Rufus in the New Forest.

Joolz Denby

It's been largely a re-reading year for me. I've returned to Edith Wharton, Dylan Thomas and laughed out loud at the opium-fumed insanity of Sax Rohmer's unintentionally hilarious Fu Manchu series (Allison & Busby). Of 2005's new books I did enjoy Cathi Unsworth's The Not Knowing (Serpent's Tail), an espresso of a femme noir, and Martyn Waites's dark, heartbreaking The White Room (Pocket Books). But it's Crusader's Cross (Orion) by that grand master of American fiction, James Lee Burke, that had me sitting up all night savouring his beautiful, elegiac prose and the intoxicating evocation of what is now, sadly, the lost world of New Orleans. Burke is a genius - this novel, complex, deeply mystical and violent, is another triumph.

Dave Eggers

CD Wright just won a big award called the MacArthur, which is awarded to people for being original thinkers and doing good things. Wright has been doing very idiosyncratic and always passionate work for a long time, and Cooling Time: An American Poetry Vigil (Copper Canyon Press) is my favourite book of hers. It's a sort of manifesto that explains why and how she writes, and why poetry is necessary. But it's not pedantic, or dull, or in any way expected. It feels very Whitman-esque (to me at least), fast and soaring like that; it's so inspiring that it's hard to sit still while reading it.

Jonathan Freedland

My year kicked off with The Right Nation by John Micklethwait and Adrian Wooldridge (Penguin), an outstanding study of the conservative ascendancy in the United States. Both Economist writers, they combine scholarly rigour with journalistic verve to tell what is an extraordinary political success story - one that goes a long way to explaining the shape of today's world.

I much enjoyed Elusive Peace by Ahron Bregman (Penguin), the companion volume to the excellent BBC documentary series charting the last five years of the Israeli-Palestinian conflict: one fascinating nugget after another. And for sheer knockabout fun and insider gossip, who could resist Christopher Meyer's DC Confidential (Weidenfeld & Nicolson)?

Linda Grant

I had some very severe opinions about fiction set in a concentration camp, but Imre Kertesz has forced me to eat my words. He won the Nobel in 2002, but we have had to wait until this summer for a new translation of his novel Fatelessness (Harvill). Utterly unlike the work of Primo Levi, Kertesz's voice is that of dispassionate wonder and enquiry, demonstrating that happiness and the inviolability of the self can survive the worst horrors imaginable. And immediately before that I read the paperback of Bob Dylan's Chronicles: Volume One (Pocket Books), twice and would have read it again had my handbag not been stolen in Selfridges.

Simon Gray

Sebastian Haffner's Defying Hitler (Orion) - an urgent account of the day-by-day corruption of public and private life in Nazi Germany. It should also be read as an alert call, not just this is how it happened, but this is how it happens. Jung Chang's and Jon Halliday's biography of the world's greatest mass murderer, Mao: The Unknown Story (Cape), which is perhaps the most horrible and certainly one of the most educative books I've ever read. Nice to recall two novels, Stephanie Merritt's Real (Faber), eloquent and witty on what's wrong with men, and Julian Barnes's Arthur and George (Cape), a look in cool and courteous prose, at a squalid English injustice rectified by obstinate English decency.

David Hare

The rediscovery of Richard Yates, America's lost novelist, year after year gives a guarantee of a wonderful read. Revolutionary Road (Methuen) is now seen as a great novel of suburban America and, for me, Easter Parade (Methuen) is no less fine. All credit, then, to Politico's, for this year giving us Young Hearts Crying, one of the author's last books before his death in 1992. It's an agonising study of artistic mediocrity, of post-war men and women who would like to be artists without being much good at anything. Over the madness, the drink and the moving resilience falls the long shadow of the second world war. Nobody combines the powerful passage of history with complete accuracy of emotion like Yates. A masterpiece.

Kathryn Hughes

I loved Barbara Caine's Bombay to Bloomsbury: A Biography of the Strachey Family (OUP) for the way it used family history to illuminate 50 years or so of British public - and, at times, very private - life. Also outstanding was Evelyn Welch's Shopping in the Renaissance (Yale) which showed that there's nothing new about getting into debt at this time of year, especially if you're a girl in need of a new party dress. Both books qualify as being "academic" history, but they're written with such pace that you're hooked before you have a chance to feel scared by the scholarship.

Simon Jenkins

Why is it danger always seems a necessary concomitant of greatness? Maria Fairweather's Madame de Staël (Constable and Robinson) was my most satisfying biography. Not a minute of De Staël's life was wasted, not a page of this book is dull. In the great 2005 anniversary tussle - Guy Fawkes versus Lord Nelson - I firmly side with the former. Antonia Fraser's The Gunpowder Plot: Terror and Faith in 1605 (Phoenix) remains the most poignant account, but James Sharpe came through strong on the day with his Guy Fawkes and the Gunpowder Plot. His Remember, Remember the Fifth of November (Profile) is a study in the potency of myth. David Miles's Tribes of Britain (Weidenfeld) peels back the early history of the British Isles, and shows how modern it really is. We have always been a most complicated of nations. To much the same point is the sharpest of personal memoirs, Xandra Bingley's Bertie, May and Mrs Fish (HarperCollins), about growing up on a Cotswold farm in the war. It proves that, of all eras in British history, the past half century has seen the most total upheaval.

Mark Lawson

Several books this year unexpectedly found new fuel in seams of material considered over-mined. Can there be anything fresh to say about Shakespeare? James Shapiro offers brilliant new readings of the writer's work and world in 1599: A Year in the Life of Shakespeare (Faber).

Is there anything new to be done with the tricksy, post-modern novel in which the writer teases the reader about what's real and what's not? Bret Easton Ellis proved that there is, in his best work of (sort of) fiction, Lunar Park (Picador), which is the terrifying story of one "Bret Easton Ellis", celebrity, junkie, husband, father and being stalked by his own characters. And two veteran English crimewriters managed to at least equal their previous best: PD James's The Lighthouse (Faber) is a classic closed-community murder mystery filled with a tender wisdom about life and death, while Reginald Hill's The Stranger House (HarperCollins), a working holiday from his Dalziel and Pascoe, is an Yorkshire-Australian tragi-comedy about religion and a scandalous political act.

Hermione Lee

One of my favourite biographies of the year was Kathryn Hughes's The Short Life & Long Times of Mrs Beeton (Fourth Estate), a lively and fascinating reconstruction of the "real" Isabella Beeton, unpicking her extraordinary posthumous legend with great skill, opening a wide window on to Victorian domestic and publishing history, and wearing its excellent sleuthing with a light grace. And I read with painful pleasure two remarkable pieces of life-writing out of Ireland, John McGahern's Memoir (Faber), a story of cruelty, bereavement and childhood torment told in McGahern's peculiarly luminous, calm, and humorous voice, intensely and vividly local; and Patrick Cockburn's The Broken Boy (Cape), an impressively unselfpitying and informed analysis of the 1950s Cork polio epidemic of which he was a victim, with a sprightly account of Anglo-Irish Cork life and the radical Cockburn household thrown in.

Fiona MacCarthy

My books of the year have been Hilary Spurling's Matisse the Master (Hamish Hamilton), the final volume of her superb life of the artist; Edmund White's utterly absorbing autobiography My Lives (Bloomsbury); AN Wilson's After the Victorians 1901-1953 (Hutchinson), a highly personal survey of a fascinating period, cunningly provocative and beautifully detailed; The Short Life & Long Times of Mrs Beeton (Fourth Estate), Kathryn Hughes's inspired reconstitution of the queen of household management.

Robert Macfarlane

Two very differently very English books impressed me: Geoffrey Hill's austere, Anglican collection of poems, Scenes From Comus (Penguin), and Iain Sinclair's antic, anarchist docu-travelogue-autobio-rant, Edge of the Orison (Hamish Hamilton).

Hilary Mantel

John McGahern is one of the finest living writers, and his Memoir (Faber) is a book his admirers have been waiting for. It casts light on all his fiction, but if you didn't know his work you could begin here, with a book about his Irish childhood which by turns makes you angry and sad, but uplifts you by the beautiful line of his sentences, by mean of pure cadences which make the rest of us look clumsy. Geoffrey Robertson's witty and dramatic The Tyrannicide Brief (Chatto & Windus) asks for a re-think on the lawyer who prosecuted Charles I, and who was himself executed at the Restoration after a travesty of a trial. Why is John Cooke not a radical hero, and why are we not listening to the contemporary resonances of his efforts to use the law to combat tyranny?

James Meek

A friend marched me into a bookshop and demanded I buy the complete short stories of Flannery O'Connor, for which I bless him. Her mid-century stories of race, religion and rural Dixieland loserdom are mindburning wonders of image and speech which I come to annoyingly late. Eothen by Alexander Kinglake (Picador) is the less known link in English travel writing between Sterne and Chatwin. The energy, simplicity and sensuousness of his descriptions of the Middle East isn't something I associated with Victorian prose. Why did he really go to Cairo, when he knew the plague was raging there? I loved Michela Wrong's new history of Eritrea, I Didn't Do It for You (Perennial). A beautifully wrought account of human vileness and the banal corruption of sacrifice.

Christopher Meyer

I've been a historian since school and I decided to go back to the subject this year. I'm particularly interested in military history because I cannot imagine what it is like to have fought in battle. I've read two enthralling books about different types of war in the 19th century. 1812: Napoleon's Fatal March on Moscow by Adam Zamoyski (Perennial), vividly describes one of the most horrific episodes in warfare. And Men of Honour: Trafalgar and the Making of the English Hero by Adam Nicolson (HarperCollins) brings together a very original portrait of Nelson the hero and gives another vivid depiction of a battle, this time Trafalgar, set in an illuminating political, social and cultural context.

David Mitchell

I savoured every paragraph of Orhan Pamuk's masterful Istanbul (Faber). A three-pronged book, this: an anatomy of the city's body and soul; a compelling account of family politics, war and diplomacy; and a study of the youthful writer's gropings through the dark towards his true vocation. I read "just one more" of the stories in Michel Faber's The Fahrenheit Twins (Canongate) until it was three o'clock in the morning, the book was finished and the next day a write-off. By turns crepuscular, buoyant, delicate, wry, horrific, otherworldly, this wordly and organ-rupturingly funny collection is a vitamin boost for the British short story. James Shapiro's 1599 (Faber) depicts a pivotal year in the theatres, courts, streets and provinces Shakespeare's England. The author loves his subject and writes erudite, undumbed-down history that none the less reads as fluidly as a good novel.

Blake Morrison

Among the diaries and essays in Alan Bennett's Untold Stories (Faber), it's the family reminiscences that stand out, with images such as that of his Aunty Myra scattering her husband's ashes among stunned picnickers on Ilkley Moor: funny, moving and true. For those not already acquainted with the American poet Sharon Olds, her Selected Poems (Cape) is the perfect opportunity: the titles look recklessly confessional ("After 37 Years My Mother Apologises for my Childhood"), but the narrative drive and attention to detail more than justify the risk, and who else would write a poem on the pope's penis? As an antidote to Yuletide slush, the anthology Light Unlocked (Enitharmon), edited by Kevin Crossley-Holland and Lawrence Sail, offers wintry, Christmas-greeting poems by (among others) Seamus Heaney, Wendy Cope and Paul Muldoon.

Andrew Motion

Arthur and George by Julian Barnes (Cape) and Saturday by Ian McEwan (Cape): they both got under my skin and stayed there. So did Alice Oswald's new collection of poems, Woods Etc. (Faber). And the great delight of my year, the book that made me feel I'd been waiting for it all my life, is the magnificently-produced and completely enthralling Birds Britannica, by Mark Cocker and Richard Mabey (Chatto & Windus).

Chuck Palahniuk

Bookstores should have a new category for their stock, something that combines short story and essay and poetry, tragedy and humor, fiction and non-fiction. Maybe there should be one shelf labelled just "Truth" or "Beauty". And sitting alone on that shelf would be Amy Hempel's books, especially this year's collection of stories: The Dog of the Marriage (Scribner). Every story reminds you how badly love can end, yet why we always sign on for another round of that torture. Hempel kills you, but then brings you back to life. A dazzling, shining new life.

Philip Pullman

Hilary Mantel's Beyond Black (Perennial) is the strangest, creepiest, most sorrow-and-pity-inducing book I've read for a very long time. As a picture of the morally and physically squalid Britain of today it's unsurpassed; it's also a great ghost story. A chilling masterpiece.

James Meek, in The People's Act of Love (Canongate), displays a confident ambition that I enjoyed very much. The picture he paints of a Russia crumbling into chaos, of the bizarre and horrifying behaviour that can flourish in unvisited corners of a vast and brutal landscape, is broad and powerful. Storytelling is coming back; both of these novels show it, and I'm delighted.

Simon Schama

Two novels made me want to rush out and buy the authors a drink: Peter Pouncey's stunning Rules for Old Men Waiting (Chatto & Windus), by turns flinty and lyrical, with (astoundingly) yet another first world war story at the heart of it that rewrites the genre. On Beauty by Zadie Smith (Hamish Hamilton) was exuberant, expansive, fabulously untidy but with a pitch perfect ear for all kinds of things Smith somehow knows about: ageing marriage; street talk in downtown Boston and the tortured self-importance of the academic life. A terrific year for the history of modern art too, with the second volume of Hilary Spurling's biography of Matisse, Matisse the Master (Hamish Hamilton) and Jed Perl's New Art City (Knopf). I really loved Maya Jasanoff's gorgeously written Edge of Empire (Fourth Estate): cultures coming together in unexpected ways in India, Egypt and Japan. And, when Hunter S Thompson went up in a whoosh I thought I should go back and read Fear and Loathing in Las Vegas (Perennial). Does it wear well? No. It rocks.

Owen Sheers

In what's been a strong year for non-fiction I was impressed by two books that give a couple of domestic issues the most human of faces, Richard Benson's The Farm (Hamish Hamilton) and Alexander Masters' remarkable deconstruction of a life (and a literary form), Stuart: A Life Backwards (Perennial). In The Short Day Dying Pete Hobbs (Faber) wrote probably the most original fictional debut of the year; a resonant tale of love and faith that moves, poignantly and powerfully, against the flow of "the modern novel". Christopher Logue's Cold Calls (Faber) is the very welcome fifth instalment of his ongoing masterly adaptation of Homer's Iliad while Carol Ann Duffy's Rapture (Picador) and Clare Pollard's Look, Clare! Look! (Bloodaxe) are both, in their very different ways, reminders that the poetic pulse still beats as strong as ever in the 21st century.

Helen Simpson

Now over 70, Alice Munro just gets better as she gets older. The eight stories in Runaway (Chatto & Windus) are literally breath-taking - they leave you winded with their toughness and brilliance. She's very good on the whole business of knowing and trying not to know, its role in making hard things softer, and on the shifty way in which time operates on memory. These stories aren't stories. They're life-spanning novels with the boring bits left out. They jump, and skip whole decades, but while the scene is happening, it's as spacious and detailed and leisurely as a novel. The great thing is, she knows how to cut to the chase.

Iain Sinclair

I've relished two alienated accounts of life in Hampstead and beyond (the sound of detonating bombs over the horizon). Elias Canetti's Party in the Blitz (Harvill) is a score-settling journal of grim poetry readings and high-caste corpse-feasting. A lethal fiction of memory. Iqbal Ahmed's Sorrows of the Moon: A Journey through London (Coldstream) appears, at first, to be wide-eyed and innocent. It soon reveals itself as a Mayhew excursion through the cruel and fantastic city we are forced to recognise as our own. Across the river, Allen Fisher's south London epic, Place, a poem of anger, love, retrieval, has been reissued in a great seething brick by Reality Street, Edinburgh.

Zadie Smith

Two new books have sent me to the back catalogue of two great writers: Hilary Mantel and Joan Didion. Beyond Black (Perennial) and The Year of Magical Thinking (Fourth Estate) are my favourites of the year. I also recommend An Experiment in Love, Giving up the Ghost and Eight Months on Ghazzah Street (Mantel - all published by Perennial), and Slouching Towards Bethlehem and The White Album (Didion - both published by Flamingo) to anyone who, like me, was dense enough not to have read them earlier. For Christmas I want all Didion's novels.

Jon Snow

Not simply because he faces trial for what he has written, but because it's a wonderful book, Orhan Pamuk's Snow (Faber) is a timely and moving insight into the collision of the west and Islam, set in the falling snows of the country of our times, Turkey. It's rare indeed to find so finely tuned a work of fiction telling us so much about the true nature of the events through which we are living. On the factual front, Zaki Chehab's Iraq Ablaze (IB Tauris) is a remarkable and important account of life inside the Iraqi insurgency. Chehab proves that for a truly holistic account, the book still outstrips even best of the bloggers.

Polly Toynbee

This startling shocker strips bare motherhood. We Need to Talk About Kevin by Lionel Shriver (Serpent's Tail) is this year's winner and the most remarkable Orange prize victor so far. For more unvarnished home truths, read back-to-back retaliatory autobiographies by Diana Melly - Take a Girl Like Me (Chatto & Windus) - and husband George Melly - Slowing Down (Viking) - authentic Bohemians writing with eye-watering candour and lack of vanity. Lynne Truss's Talk to the Hand (Profile) is so funny about modern rudeness that it almost escapes "We're all going to hell in a handcart". Best political thinking: Richard Layard's Happiness: Lessons from a New Science (Allen Lane), reminds us what all the getting and spending and politicking is really for.

Rose Tremain

I've always been an ardent fan of Carol Ann Duffy's work. This year's Rapture (Picador) confirms her, in my eyes, as the most humane and accessible poet of our time. Through a series of linked poems, charting the passionate progress of a love affair - from the "glamorous hell" of losing your heart, through the "cargo of joy" that mutual love brings, to the "dark hour out of time" that signals final separation from the beloved - we feel the steady beat of true emotional understanding. Nothing is strained here, nothing is imposed or false or tricksy or self-vaunting. Rapture is essential reading for the brokenhearted of all ages.

Sarah Waters

I've been impressed by two first novels by young writers this year. In The Honeymoon (Picador), by Justin Haythe, a boy surveys his claustrophobic relationship with a self-deceiving mother. Not much happens - and yet a great deal happens, and the whole thing is so odd, subtle, funny and sad, and so beautifully written, you can't help but feel that Haythe is on his way to being a major literary talent.

Colin McAdam's Some Great Thing (Vintage) tells the story of two ambitious men involved in the development of Ottawa in the 1970s. It combines great story-telling with a prose so vivid and visceral it is really poetry. A hugely exciting book.

Tariq Ali

First three equally absorbing novels: The Double by Jose Saramago (Vintage) is a philosophical reflection, a modern fable and, at the same time, a mystery novel woven together by a Portuguese master story-teller. Gate of the Sun (Harvill Secker), Elias Khoury's moving, funny and often savage work is the first Arab novel to make the Palestinian disaster of 1948 its central theme. Broken Verses (Bloomsbury) by Kamila Shamsie is set in Karachi during the Zia military dictatorship and is an affecting story of a courageous feminist and her love for a radical poet without being politically correct in any way. The non-fiction from which I learnt a great deal this year is authored by a former West Point graduate and US military historian, Andrew J Bacevich. The New American Militarism: How Americans are Seduced by War (OUP, USA). A good Xmas present for local warmongers.

Sebastian Barry

Ali Smith's The Accidental (Hamish Hamilton) progresses with rocketlike unstoppability; Sartre and Jacques Tati could have been the parents of this gleaming book. Dermot Bolger has written his finest novel in The Family on Paradise Pier (Fourth Estate); his portrait in bold strokes of a lost Anglo-Irish world reaching out into every struggle of the 20th century is fantastically adventurous. Carson (Hambledon and London), by Geoffrey Lewis, also astonishes, not least in its account of the highly emotional Carson at sixty falling irrevocably in love with Ruby Frewen, half his age, even as the whole world of Ireland hung in the balance.

John Berger

The novel Findings, by Kathleen Jamie (Sort of Books) because it finds without disturbing the found. And this takes courage and delicacy.

Naomi Klein

Night Draws Near by Anthony Shadid (Henry Holt & Company). Told exclusively from the perspective of regular Iraqis, these are the war stories we never hear. Shadid, who won the 2004 Pulitzer Prize, avoids the trap of critiquing the occupation for its poor execution - bad planning, corruption, brutality. For his characters, there is only one question that ever mattered: Is this a liberation, or is it an occupation? As an expert storyteller, Shadid tries to disappear but he cannot. In a country trampled by foreign ideologues who are ignorant of its culture and language, the author's own fluency in Arabic and deep understanding of Iraqi history themselves become damning indictments of the arrogance of occupation. Why doesn't this definitive work have a British publisher?

Kate Mosse

A strong year for fiction - including Diana Evans 26a (Chatto and Windus) and Lionel Shriver's We Need to Talk About Kevin (Serpent's Tail) - but also plenty of excellent non-fiction to get your teeth into, not least Tom Holland's wonderfully readable history of the first world empire and the battle for the West, Persian Fire (Little Brown). Holland sets up Greece versus Persia of 2500 years ago, skillfully separating fact from fiction. Readable history at its best with great battles scenes! More sobering, another essential read is A Woman in Berlin, the anonymous diary of a German woman caught in Berlin in April 1945 with the Red Army storming the city (Virago).An observant, elegant and sharp writer, with an extraordinary sense of detachment, the book's an uncomfortable reminder that, when it comes to war, things have not changed so very much.

Helen Oyeyemi

I loved Uzodinma Iweala's Beasts of No Nation (John Murray), written in an English that has had its back broken by Nigerian tonal rhythms - Iweala's tale of a nine year old boy soldier in an unnamed African state at war has more than a tinge of truth. Aimee Bender's short story collection Willful Creatures (Doubleday Books) includes a tale in which a big man buys a tiny man and keeps him in a cage. Another book in which I found a comparably heady mix of imagination, skilful prose and generosity of spirit was Marilynne Robinson's pitch-perfect Gilead (Virago), it was a three day wade, and should have been longer.

Lionel Shriver

I'd strongly recommend The March by E.L. Doctorow (Random House - USA), about the end of the American Civil War. The novel leaves you at a loss as to whom to be angriest at: General William Tecumseh Sherman and his rampaging horde of Union troops as they burn to the ground whatever they can't loot or rape, or the Southerners who started the most deadly conflict in American history and so arguably deserved everything Sherman's march rained down on them. Doctorow puts you so smack in the middle of all those severed limbs, dead horses, and smoking plantations that the smell of gangrenous wounds, rotting flesh, and charred roofbeams rises from the page.

Research by Ginny Hooker."