José Saramago por extenso

17.11.06 at 10:25 da manhã

Saramago em entrevista a Adelino Gomes (conclusão)

Continuo a citar o suplemento "Mil Folhas" do jornal Público de 17 de Novembro:
"[...]MIL FOLHAS - É este um livro à procura da idade da inocência? A idade em que todos os pecados são perdoados? Dos que confessa, o maior talvez seja o ter desviado uma maçaroca do seu primo José Dinis...
JOSÉ SARAMAGO - ... o resto é tudo natural.
P. - Bom, há uns jogos de amor...
R. - À procura da idade da inocência, ou da idade em que se supõe que se é inocente? Tínhamos de ter uma definição bastante exacta de inocência. É-se inocente da mesma maneira aos quatro anos do que aos oito? Não, ainda que haja uma dose importante de inocência em cada uma dessas idades.
P. - O que pretendeu, então?
R.- A minha infância nunca se desvaneceu nas brumas da dita memória. Eu considero que, se não somos a criança que fomos, pelo menos a criança que fomos gerou a pessoa que somos. Se a minha vida tivesse sido só em Lisboa, é possível que eu não escrevesse este livro. Mas a recordação daqueles anos que vivi...
P. - ... muito poucos: passava lá as férias, apenas.
R. - O que conta é a intensidade das vivências, não é a duração delas. Comecei a ir para a Azinhaga quando tinha quatro ou cinco anos. Antes disso não tenho memórias. Mas a partir dos seis anos até aos 15 ou 16, já é muito claro para mim. Ia nas férias grandes, nas da Páscoa, do Natal, tudo quanto era férias. Muitas vezes os meus pais não iam mas eu ia de certeza.
P. - Por que é que a grande cidade, que é tão mágica, não lhe deixou essas marcas que deixou a aldeia, pobre?
R. - Eu não tinha vindo da aldeia. Vim para Lisboa com um ano e meio. O mágico tinha ficado lá. É um fio que não se interrompeu. O fio veio da Azinhaga até Lisboa e imediatamente foi de Lisboa até à Azinhaga. E todo esse tempo houve uma espécie de "vai e vem" entre um lugar e outro. Mas o lugar onde eu queria estar, de facto, era a aldeia.
P. - Tirando algumas descrições da ida a cinemas de bairro, a cidade acaba por não ser um cenário forte da sua escrita. Por que será isso?
R. - Provavelmente eu tinha a imaginação demasiado ocupada com a aldeia e a nostalgia de cada vez que saía de lá, porque saía de lá com lágrimas. A aldeia eram os meus avós, a casa dos meus avós, a bicharada - as galinhas, os galos, os patos, os porcos - e aquilo que sempre foi a minha fascinação: os longos passeios sozinho. Aquele não era o tempo em que os pais diziam "tem cuidado, olha que...". A gente saía, saía.
P. - Punha o alforge, tomava um conduto...
R.- ... e andava quilómetros e quilómetros. Às vezes era simplesmente o rio, ou para pescar, ou para nadar, ou para remar [e conduzir o barco à vara no rio Almonda, afluente do Tejo], que é das coisas de que tenho mais saudades.
P. - Porquê voltar àquelas histórias que já nos comoveram tanto [quando as contou no discurso do Nobel, em 1998, em Estocolmo], como a do seu avô que se despediu uma a uma das árvores do quintal, antes de morrer; da sua avó que lavava os bácoros mais fraquinhos, no Inverno, e os levava para o quente da cama, assim os salvando?
R. - Não se contam só essas. Contam-se histórias que você nunca tinha ouvido: a do meu tio Francisco Dinis, que queria matar a minha tia [Maria Elvira]; a história de Domitília [prima, com quem fez jogos amorosos na cama, com menos de 10 anos], você também não sabia nada disso. O que não teria sentido é que, tendo de escrever este livro - porque eu tinha de escrever aquele livro, queria escrevê-lo desde há muitos anos -, omitisse aquilo que já tinha contado.
P. - Acha que os seus leitores ficavam mais pobres se não conhecessem esses episódios da sua vida, alguns até feios, desagradáveis?
R. - Eles dirão. Você acharia natural - ainda que, conhecendo-me, estranhasse - que eu me pusesse a escrever a minha autobiografia até ao minuto antes. Do meu ponto de vista, não valeria a pena, não o farei. Sentiria vergonha, como já disse. Agora esta pequeníssima autobiografia, de uma criança que não tem ideia nenhuma do futuro que vai ter, que nasceu num meio que não era o mais propício a grandes aventuras intelectuais?...
P. - Há uns anos escreveu quatro ou cinco livros ["Cadernos de Lanzarote"] que outra coisa não foram do que um diário da idade adulta...
R. - Parei porque o último era de 1997. No ano seguinte ganhei o Prémio Nobel. Imaginar-me a contar o prémio e tudo o que veio depois - os aplausos, as emoções, as condecorações, os doutoramentos, não. Afasta de mim esse cálice! Tive de cortar. Não senti que fosse higiénico entregar-me a esse exercício.
P. - O que é que deve a esses primeiros anos da sua vida?
R. - Não se trata de dever. Creio que me reconheço nesse tempo com a mesma realidade que me conheço hoje. Sei umas quantas coisas mais? Sim. Mas se olho para dentro de mim, não vejo diferenças.
P. - As suas grandes decisões, tomou-as na idade da razão. Até chegou a escrever uns livros que depois repudiou. Aquilo que verdadeiramente José Saramago é, no fundo, é aquilo que foi sem ter responsabilidade nenhuma nisso, mais aquilo que passou a ser a partir do momento em que se tornou responsável pelos seus actos.
R. - O quê, concretamente?
P. - O resto, a partir dos 15 anos.
R. - Tinha que meter aí uma série de coisas que não me apetecia escrever: os namoricos - a que me refiro também neste livro, mas com uma certa distância e uma certa ironia...
P. - ... a Domitília e a Maria da Piedade, se estivessem vivas, talvez não apreciassem muito...
R. - ... brincadeiras, quem não passou por elas? Cito sempre aquelas palavras de Alexandre O"Neill: "Não contes a vidinha." Sigo-o. E a prova é que, tirando o "Manual de Pintura e Caligrafia", onde há dados autobiográficos que surgem depois aqui, não há dados pessoais nos meus livros.
P. - No fundo, vem contar ao mundo a parte do tempo que viveu, mas da qual não tem responsabilidade nenhuma: a paisagem, os pais e avós, os vizinhos.
R. - Estava a construir-me, ora essa.
P. - Milhares de pessoas ao mesmo tempo estavam a construir-se e viveram assim, exactamente. A sua diferença [em relação aos outros] é depois.
R. - Também quando o Salazar nasceu em Santa Comba Dão e andava lá atrás das cabras, se é que andou, nunca lhe passou pela cabeça que viria a ser aquilo que foi.
P. - Salazar e Saramago, depois disso em que foram, se calhar, iguais, diferenciaram-se.
R. - Mas foram isto depois disso. O tempo não se interrompeu. A pergunta deve ser posta ao contrário...
P. - ... se for melhor do que a minha, fico-lhe agradecido.
R. - Teria você feito o que fez se não tivesse vivido essa vida pequena e insignificante - ou aparentemente pequena e só aparentemente insignificante? A grandeza que eu lhe encontro é exactamente essa: uma criança no meio do mundo. Tire-lhe a paisagem, essa palavra não interessa. Uma criança no meio do mundo olhando em redor e dizendo: "Estou aqui."
P. - A minha pergunta não era exactamente essa. Era: o senhor esteve no meio do mundo como milhões de outras crianças do mesmo mundo. E no entanto foi diferente deles todos. A sua singularidade começa aí.
R. - Se você pensar em si mesmo...
P. - ... se calhar estou a pensar em mim mesmo...
R. - ...tem de chegar a essa mesma conclusão e fazer essa mesma pergunta: em que momento é que eu comecei a ser o que sou? A única resposta é esta: começámos a ser o que somos no dia em que nascemos. Não vale a pena especular muito mais ao redor disto. Agora: ao longo da vida podem acontecer coisas que abrem caminhos até aí inesperados. Por exemplo: escrevi um livro em 1947; outro que ficou inédito; depois não escrevi nada mais durante 19 anos. Se eu tinha ganho o apetite de escrever, por que é que não continuei?
P. - Porque aí tinha já a razão e tinha o sentido crítico. Aquilo não lhe chegava.
R. - Muito bem. Concluí (embora só mais tarde o tenha pensado): "O que estou a aproveitar são sedimentos de leituras; não vivi nada, não sei nada e estou para aqui aldrabar." Depois aparecem os "Poemas Possíveis" e uma série de livros, a partir de 1966. Aquilo que eu sou deve ter começado por alturas dos últimos dias de Novembro de 1975. É então quando eu decido que tenho de procurar trabalho. Claro que o meu partido não teve a gentileza de me convidar para ir para a redacção de "O Diário", como fez a todos os que saíram do "Diário de Notícias", na altura. Na altura não gostei nada. Hoje continuo a não gostar, mas agradeço.
P. - Ganhámos um escritor, não sei se tínhamos ganho um jornalista comunista interessante...
R. - Tenho já uns seis ou sete livros escritos. Estou sem trabalho nem esperança de ter. O que é que faço? Foi aí que decidi, sem dramatismo nenhum, como quem sente que chegou a hora de tomar aquela decisão: "Vou ver o que é que posso finalmente fazer para chegar a ser um escritor." Até aí tinha livros, mas não me via como escritor. É aí que vou para o Alentejo; é aí que vivo, durante seis ou sete anos de traduções.
P. - Não seria interessante escrever um livro em que nos contasse mais profundamente isso tudo, à semelhança do que fez sobre a sua infância?
R. - Isto conta-se em meia página.
P. - É curioso que esse universo por onde se movimenta e o seu olhar se espraia, no livro, nunca enxergue o mundo dos possidentes. Há um seu tio que trabalha para um senhor rico; há no liceu um menino rico a quem as criadas vão levar o almoço...
R. - ... e há os patrões da minha tia Maria Natália...
P. - ... os Formigais. Mas é tudo muito distante, de resto renuncia até a chegar-se-lhe um pouco mais quando surge a oportunidade de ir ao palacete do tal menino "gordo, triste", porque percebe que foi apenas um instrumento.
R. - Tinha deixado de ser útil, pensei. O caminho dele era outro: ele estava no liceu, eu tinha ido para a Escola Industrial aprender a ser serralheiro mecânico. Não devíamos ter muita coisa a dizer um ao outro.
P. - O poder, a riqueza, a existência de uma outra condição - isso não o tocou, nunca, neste período, sabendo nós que se torna, depois, um homem que quer mudar o mundo?
R. - Há que entender o que era ser pobre nessa época. A gente nascia pobre e ficava pobre. O mundo parecia que estava organizado assim. Havia uma espécie de aceitação dos factos. Eu era uma criança, se os mais velhos tinham aceitado os factos, eu também os aceitava. Era assim. Nós, os da minha classe, tínhamos com essa outra classe uma relação de dependência. Quem era pobre ia para a praça ser escolhido para ir trabalhar durante uma semana ou alguns dias. Os capatazes vinham, escolhiam este, aquele, outros ficavam.
P. - Quando o livro termina, o José Saramago passa pelo palacete, indiferente, ou conformado ao seu destino e ao destino diferente a que o seu colega do liceu estava destinado.
R. - A construção do meu destino talvez comece aí. No fundo, essa ideia de que com os poderosos não há que ter relações - primeiro, porque eles não querem; depois, porque talvez nós não devamos - começa aí, para mim, de uma forma inconsciente. Que interessa ir a casa da família Veiga, ou da família Faria, dos grandes latifundiários lá da terra? Eu era o neto do Jerónimo Melrinho, nada mais. Não tinha entrada. Como é que eu podia falar deles? Mesmo hoje, sou incapaz de pôr num romance meu um rico. Porque não os conheço. Dizer simplesmente "aqui está um personagem rico", e de três em três páginas, para que o leitor não se esqueça, lembrar que ele é rico, não é evidentemente suficiente. Tenho uma espécie de rejeição instintiva aos salões do poder.
P. - Embora nos últimos 20 anos não tenha feito outra coisa que não pisar corredores alcatifados.
R. - Circulo por aí com naturalidade. Mas entro e saio. Não fico lá.


Espero poder escrever ainda mais um livro ou dois

José Saramago diz que se sente tentado a fechar o círculo, com esta autobiografia. Porque acha que esgotou, de algum modo, os grandes temas da vida. E porque não lhe interessa estar a contar agora "a vidinha".
P. - Já lhe "caiu" entretanto algum título, do limbo da inspiração [como costuma contar que lhe acontece regularmente, talvez com a excepção de "Levantado do Chão", que não nasceu "de qualquer iluminação súbita"]?
R. - Ainda não. Não sei se deva estar inquieto, ou não. Às vezes tem tardado mais. Este livro é um livro perigoso, sabe.
P. - Porquê?
R. - Porque é um livro tentador.
P. - Em que sentido?
R. - No sentido em que, no fundo, fecha o círculo. E se eu me deixasse ficar por aqui?
P. - Os seus leitores mais fiéis responder-lhe-iam: "Desculpe lá, ainda só vai nos 15 anos. A parte mais rica da sua vida está ainda à espera [de ser contada]..."
R. - Vamos lá a ver: autobiografia já disse que não haverá. Enfim, espero poder escrever ainda mais um livro ou dois.
P. - Na entrevista sobre "As Intermitências da Morte" interrogava-se sobre se não teria já chegado o dia em que já não teria nada mais a dizer [Mil Folhas, 12-11-2005].
R. - Essa é uma questão que se apresenta. Sobretudo - se me é permitido dizê-lo nestes termos - para o caso da literatura que eu faço.
P. - Pode explicar melhor?
R. - Nos meus livros, sobretudo nos romances, abordo questões da nossa vida que considero importantes. Isso levou-me a um tipo de temas e de escrita que aspiram, não direi à universalidade, mas a interessar a todos nós, em menor ou menor grau. Ou pelo menos àquelas pessoas com quem, por pertencerem a culturas próximas das nossas, temos uma linguagem, conceitos e práticas em muitos aspectos comuns. Este tipo de abordagem não admite repetições. Não quer dizer que eu tenha dito tudo em cada caso. Mas não posso acrescentar nada mais àquilo que já está escrito. Se eu contasse a vidinha, para voltar ao O"Neill (isto é: com quem fui para a cama, os copos no bar, o emprego que se ganha ou se perde), isso sim, podia repetir à saciedade.
P. - Se acaso acontece que é o último, o último parágrafo que terá escrito será aquele em que conta a história da infidelidade de uma mulher da aldeia, que surpreende com um forasteiro, entre a vegetação, nas ruínas de uma antigas malhadas de porcos, onde dias antes tinha avistado um grande lagarto verde. As frases com que termina o livro: "O homem acendeu um cigarro. Soltou duas baforadas, depois deixou-se escorregar do valado e despediu-se: "Adeus." Eu disse: "Adeus." A mulher tinha desaparecido de vez. Nunca mais tornei a ver o lagarto verde."
R. - O fecho desse livro, por excelência, é esse. Recorde-se que ela disse que eu ia dizer ao marido. Não é preciso dizer que não o fiz.
P. - Sim, portou-se bem. Diz que esgotou, de algum modo, os grandes temas que lhe interessa abordar. Também acha que isso aconteceu no plano literário?
R. - Eu referia-me ao plano literário. Embora se trate de problemas no plano temático, eles são tratados num plano literário. Bom, mas dito isso, acho que será impossível que eu tivesse esgotado nos meus livros tudo quanto são questões temáticas. Possivelmente daqui por quatro dias vem uma ideia. Não entremos em pânico... "