José Saramago por extenso

16.11.06 at 2:35 da tarde

Entrevista de José Saramago à "Visão"

Continuo a citar a Visão:“[…]Pensa na Azinhaga como se ela fosse o Pombalinho, a aldeia vizinha?Não sei como é que é agora, mas naquele tempo nós [os habitantes da Azinhaga e os do Pombalinho] não nos dávamos muito bem. Esse é um problema mais do que conhecido – terras vizinhas que, por uma razão qualquer, têm entre si uma certa rivalidade. Nós [os da Azinhaga] chamávamos-lhes os «pombaleiros».
À Azinhaga de hoje faltam as oliveiras, como escreve no livro.Onde havia milhares de olivais há, hoje, milhares de hectares de milho. Parece-me óptimo, uma vez que toda a gente precisa de milho, mas eu precisava dos meus olivais. Não digo que me cause dor, mas é uma coisa que me causa um desprazer. Simplesmente, aquela não é a minha terra. De um lado, estão os rios (o Almonda e o Tejo) e a Lezíria, mas, do outro lado, tudo desapareceu.
A sua Azinhaga é, portanto, a da memória?
Tenho por lá ainda uns primos, a quem não vejo há uma quantidade de anos e a quem, provavelmente, nem reconheceria se estivesse com eles. Não sei sequer se isto tem algum sentido porque, na verdade, eu deveria ter esquecido... Esquecemos tanta coisa. Mas o que é que aconteceu naqueles anos, com aquela terra, aquela gente, aquelas casas, aquele modo de ser e de viver, para que aquilo tudo ficasse cá dentro? Dá-me uma espécie de alegria, muito íntima, ter escrito este livro, por nele terem ficado uma quantidade de pessoas que, de outra forma, não ficariam em parte nenhuma – a minha tia Maria Elvira, o meu tio Francisco Dinis, o meu primo José Dinis.
E os Baratas, uma das famílias com quem viveu em Lisboa.
Os Baratas e aquelas aventuras precocemente eróticas com uma moça da família... Enfim, dá-me essa alegria. Ao escrever os seus nomes e ao dar a conhecer algo das suas vidas, sinto-me como se estivesse a pagar uma dívida que não contrai. Já tinha sentido o mesmo em relação ao meu irmão quando pedi a certidão de nascimento à conservatória da Golegã e, de repente, vejo, com assombro, que a data do falecimento não estava lá. Penso que é no Manual de Pintura e Caligrafia que existe uma passagem em que eu digo que todos deveríamos escrever a nossa autobiografia. Claro que o mundo estaria cheio de autobiografias que provavelmente ninguém leria... Assim, pelo menos, no que diz respeito àqueles que não o fizeram (e entre eles estão estes de quem eu acabo de falar), é certo que uns tantos milhares de pessoas vão ler os seus nomes e conhecer algo das suas vidas.
Como se estivesse a dar-lhes vida?
Mantê-los cá. No fundo, é isto. Mantê-los cá.
Porque é que foi doloroso escrever estas memórias?
Há coisas que são dolorosas e, por vezes, até me ponho a duvidar se deveria tê-las escrito... Não vou fazer um drama com a injustiça da bofetada que o meu pai me deu, mas decidi contá-lo para chamar a atenção para a necessidade que os adultos têm de compreender as crianças. Dantes havia nos jornais uma secção, que infalivelmente se chamava Cuidado com as crianças, onde apareciam notícias de coisas que tinha acontecido a miúdos como quedas e desaparecimentos.
Foi por isso que foi doloroso fazer este livro?
Não tanto por isso, mas mais por causa da chamada violência de género. Sabemos que era um problema comum, tão comum que eu até falo nisso. Este ano, só em Espanha, foram assassinadas mais de 60 mulheres. Como é que isto pode passar por ser a coisa mais natural do mundo? Claro que o meu pai não assassinou a minha mãe, mas tratou-a mal algumas vezes. E foi isso que me custou muito a pôr no papel. Um amigo comentou comigo que achava que estas coisas não se contam. Eu perguntei-lhe: mas não se contam porquê? Queres que eu, como acontece nos anúncios da televisão, invente a felicidade de todos os dias? A família é o lugar de todas as tensões e conflitos. A história – e a vida de todos nós – está cheia disso.
Como é que aquele rapaz, filho de gente humilde, neto de analfabetos, consegue sair daquele ciclo de pobreza, tornando-se no que é hoje?
Do ciclo da pobreza pode sair-se com a sorte grande.
Mas a si nunca lhe saiu a sorte grande.
Tenho tido sorte, mas a sorte grande nunca me saiu. Nunca fui uma pessoa ambiciosa, nunca tratei de estabelecer um plano para ir daqui para ali e, depois, dali para acolá. Teria talvez uns 18 anos quando disse uma frase que, na boca de um adolescente, parece não ter qualquer sentido: aquilo que tiver que ser meu às mãos me há-de vir ter. Lembro-me perfeitamente como se estivesse a dizê-lo agora. Parece uma espécie de condição fatalista, de que vieste ao mundo e, portanto, não tens que fazer nada porque aquilo que tiver que acontecer, acontece. Pões-te digamos debaixo da figueira e esperas que o figo te caia na boca quando estiver maduro e já está. Não é isso. Fiz uma quantidade de coisas na minha vida.
No sentido de aceitar o que a vida lhe dá?
No sentido de simplesmente não ter ambições. Não é nenhuma condição fatalista, antes a ideia de viver cada dia como aquilo que o dia é, de fazer cada dia aquilo que o dia me pede. E depois logo se verá o que é que sucede. Repare: aos 24 anos publico Terra do Pecado (esse livro que nunca mais li) e ainda escrevo outro livro, Clarabóia, que permaneceu inédito (quando eu já cá não estiver façam com ele aquilo que quiserem). Mas, de repente, dou-me conta de que não valia a pena. De que aquilo que eu estava a fazer era apenas seguimento de leituras anteriores. Enfim, 1938, 1939, 1949... é quase pré-história.
Foi importante ter havido um professor que chamou a atenção do seu pai, dizendo que ali estava um bom aluno?
Não sei, acho que não. Aquilo que realmente mudou alguma coisa foi a minha transformação em leitor.
E isso é posterior.
E isso vem depois, claro. Quando o director da Escola do Largo do Leão chama o meu pai para lhe dizer que o rapaz é bom aluno e que, como tal, pode fazer a 3ª e a 4ª classe juntas, ficamos todos muito contentes. Como podia eu – com 8, 9 ou 10 anos - tirar conclusões? Era apenas algo de agradável que me estava a acontecer. A minha entrada nos livros, devo-a a duas coisas.
Quais?
Nos dois anos em que frequentei o liceu, na disciplina de Português, tinha um livro muito pouco atractivo (nada atractivo mesmo) – a selecta. A selecta literária era a biblioteca de quem não tinha outra. Ali apareciam poesias, contos, trechos de romance... No fundo, era uma biblioteca num livro só. Depois, quando passei para a Escola Industrial Afonso Domingues, onde apenas espero encontrar técnicas e ciências, também tive Português e Francês. A minha pergunta é: nos programas do ensino técnico de hoje há literatura? Se calhar, não há. Devíamos aprender com algumas das coisas que antes aconteciam porque, pelo menos no meu caso, não sei o que é que seria se eu não tivesse tido estes estímulos. Só depois é que fui à procura da grande biblioteca, as Galveias, que não seria tão grande assim, mas para mim era o mundo... Antes disso, porém, ainda houve outro momento – quando eu tinha 19 anos e já não estava nas serralharias dos hospitais, um colega meu, mais velho, emprestou-me 300 escudos para eu comprar uma série de livros daquela colecção de divulgação literária publicada pela Editorial Inquérito. Ainda os tenho a todos, são como uma espécie de relíquia.
Além de uma breve referência à Guerra Civil de Espanha, não existem neste livro quaisquer referências políticas. Essa consciência veio-lhe muito mais tarde?
Eu era um garoto... Vá perguntar aos moços que agora têm 13 anos que consciência política é que eles têm. Naquela altura, a questão nem sequer se punha porque, no fundo, pode dizer-se que não havia vida política. Havia jornais censurados e, sobretudo, havia um regime bastante saloio. Basta ver as fotografias de então – os ministros de Salazar eram todos burgessos (para usar uma palavra que hoje não se usa muito, mas que tem uma capacidade de dizer extraordinária). Salazar, esse, não tinha cara de burgesso, ainda que o fosse.
Estas memórias acabam quando tem 15 anos. A vida daqui em diante não merece ser contada?
Francamente, teria vergonha de escrever uma autobiografia completa com os meus triunfos literários, sociais ou políticos. Não quer dizer que não haja grandes autobiografias, que as há, mas penso é um pouco como – a imagem é um brutal, ou talvez não... – se eu me assoasse e, depois, olhasse para o lenço para ver o que é que saiu. O meu propósito foi só este – a infância, as raízes que eu tenho, que eu continuo a ter e a alimentar. O resto? Uma autobiografia até aos 84 anos de vida? Quem é que aguentaria lê-la?
A propósito da polémica em torno de Descascando a Cebola, de Günter Grass, já disse serem hipócritas alguns dos comentários que se fizeram.
Sobre isso há um episódio recente com uma certa piada. Dei uma entrevista a um jornal brasileiro, O Estado de São Paulo, e falaram-me nisso. Eu respondi que parece que chegou a altura de eu próprio fazer a minha confissão. E contei que estive nas juventudes salazaristas, que se chamavam Mocidade Portuguesa, que era automático, que todos tinham que estar lá. E acrescentei: a única coisa que eu consegui foi nunca usar o fardamento. Rematei, dizendo que aquela foi a minha primeira vitória contra o fascismo. Então não é que o jornal tomou a sério esta coisa e, em perguntas suplementares que me mandou, tomou a minha pertença à Mocidade Portuguesa, onde inevitavelmente todos estávamos, como algo similar àquilo que aconteceu com o Günter Grass? A imprensa é um perigo. Sobretudo quando não entende aquilo que se lhe diz. E foi o que aconteceu.
As Pequenas Memórias são literatura?
O termo literatura foi inventado no século XVII, ou coisa que o valha. Antes disso, não havia literatura, havia livros. Depois, caiu-se nesta coisa de dizer que umas coisas são literatura e outras não. É evidente que existem umas tantas coisas sobre as quais temos dúvidas, uma vez que (sobretudo por causa da importância que o romance ganhou no imaginário mundial) tendemos a ver a literatura como criação ficcional. Aceitemos que As Pequenas Memórias
Nunca pensou ficcionar a Azinhaga?
Quando escrevi Levantado do Chão, quando a ideia do livro se me apresentou, o meu primeiro impulso foi o de situar o livro na Azinhaga. Mas, depois, senti imediatamente que a coisa não ia funcionar. Eu conhecia a Azinhaga demasiado bem, tinha que envolver pessoas, tinha que contar situações que poderiam depois ser reconhecíveis. Não dava. Quando o percebi, fui para o Alentejo e, embora também lá haja figuras reais, acho que foi uma boa medida não ter tomado a Azinhaga como centro.
Por conhecer demasiado bem?
Por conhecer demasiado bem e, por isso, por não me dar muita margem para a invenção. Tenho a sensação de que me sentiria prisioneiro daquelas fronteiras.
Para escrever este livro, refreou alguns episódios da sua memória?
Não. A história da questão familiar foi a única coisa em que hesitei, em que duvidei, até me decidir. Há também aquela história horrorosa do arame que, aos 3 anos, me meteram pela uretra adentro. Mas também essa senti que tinha que lá estar.
Uma curiosidade: porque é que a sua família, quando já está a viver em Lisboa, mudou tantas vezes de casa?
Não sei. O mais curioso é que, em alguns casos, não se tratava apenas de uma família. Mudavam três famílias e todas que se punham de acordo para sair daquela casa e ir para outra. É verdade que eu era pequeno demais para me aperceber de determinado número de coisas, mas não creio que fosse por não se ter pago a renda. Como era muita gente, na cozinha chegavam a estar três ou quatro mulheres a fazer o almoço ou o jantar. Aquilo era realmente complicado e, por isso, creio que a ideia sempre foi a de procurar casas mais amplas.
Parece que, em matéria de artes, àquele garoto, o cinema chega antes dos livros. Foi de facto assim?
Sim, mas, para mim, naquela altura, o cinema não era exactamente uma arte.
Era um entretenimento?
Era um entretenimento. E um entretenimento muitas vezes agradável, outras vezes absolutamente assustador. Os pesadelos acabaram com a mudança da Rua dos Cavaleiros para a Rua Fernão Lopes. Até aí, o medo vivia dentro de mim, mas acabou por passar. O cinema era aquilo – era o Salão de Lisboa, o Piolho, onde (em vez de cadeiras) só havia bancos corridos. Como havia sempre aquela coisa de «entra mais um», nós encostávamo-nos uns aos outros para que coubesse mais um. Não creio que este mundo me tenha impressionado tanto como o da literatura que descobri em Maria, a Fada dos Bosques e em A Toutinegra do Moinho.
Que eram vendidos em fascículos.
Compravam-se os fascículos e, depois, encadernava-se. No fundo, era como comprar um livro a prestações. Eram tempos, eram tempos. Eram tempos que, hoje, vistos à distância, podem parecer um pouco ridículos. Nós tínhamos pouco... Basta que eu me lembre do caixote do lixo da minha mãe e que o compare com o caixote do lixo de hoje. Agora só consumimos, consumimos loucamente. Não estou a dizer que aqueles tempos eram melhores, é evidente que não eram melhores. Quando eu nasci, a esperança de vida na minha aldeia era 33 anos. Havia velhos, mas sobretudo havia velhos que não o eram na idade, que apenas o eram na aparência. A partir dos 35/40 anos, todos eram velhos. Caíam os dentes, apareciam as rugas e os esforços físicos deixavam marcas na maneira de estar e de andar. Não era o paraíso. Mas, para uma criança, parecia o paraíso.
Mas escreve com uma certa nostalgia daqueles tempos.
Certas coisas marcam. Não creio que, no nosso país, haja muita gente que possa dizer que teve uns avós que metiam os bácoros na cama para que não morressem, por causa do frio. E se a alguém (como é o meu caso) isso aconteceu, isso forma uma pessoa. Dirão: que tem isso a ver com a formação? Tem tudo a ver com a formação.
«O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever».
Não sabia ler nem escrever, mas para mim a figura dele foi fundamental. Era um homem alto e magro, muito magro, seco de carnes. E falava pouco...
Fica a ideia que a sua mãe também endureceu muito, com a morte do seu irmão.
Creio que sim. Não é que a minha mãe não gostasse de mim, mas a morte do meu irmão fez-lhe muito mal. Chamo-lhe secura, endurecimento... Eu pedia-lhe um beijo e ela não mo dava ou, então, quando dava, era sempre um beijo de raspão. Não é que ela não me quisesse, mas a morte do meu irmão deve, de facto, tê-la endurecido. Também não é que ela que quisesse esconder os seus sentimentos, mas àquele outro filho também podia acontecer o mesmo... Só muito mais tarde é que consegui olhar para esta situação de uma maneira já mais objectiva. Naquele momento só me doía e, sobretudo, não compreendia porquê. Mas, enfim, tudo acaba por ter a sua explicação e ocupar o seu lugar.
Como vai a adaptação para cinema de Ensaio sobre a Cegueira, a cargo de Fernando Meirelles?
Está a andar. As filmagens começam em Junho do ano que vem e, por ora, é preciso preparar o casting e uma infinidade de coisas que eu nem imagino... Os exteriores serão filmados em São Paulo de uma forma que não se reconheça a cidade, e os interiores, em Toronto. Eles contam terminá-lo em Setembro.
Leu o guião?
Claro que sim. Em princípio, com um bom guião pode fazer-se um bom filme, mas não é automático. Mas estou convencido de que o Fernando Meirelles vai fazer um bom trabalho. Ele já tinha pedido autorização para fazer o filme e eu, naquela altura, disse que não porque simplesmente dizia que não a tudo quanto me pediam. O que é curioso é que esse mesmo homem a quem eu não dei o filme venha agora a ser contactado pelos produtores do filme. É demasiada coincidência, mas até mesmo as coincidências que são demasiada coincidência podem acontecer.”
também são literatura e não falemos mais no caso.