José Saramago por extenso

21.11.05 at 10:45 da manhã

Ainda José Saramago entrevistado por Adelino Gomes

"O universo não tem notícia da nossa existência"

"A finitude é o destino de tudo", diz José Samarago ao Mil Folhas a propósito do seu livro "As Intermitências da Morte", por ele próprio ontem apresentado, em Lisboa, ao público português e aos seus leitores de outros seis países e da região autónoma da Catalunha, representados pelos respectivos editores.

Numa entrevista concedida no início da semana na residência que Saramago e a mulher, a jornalista e tradutora Pilar del Rio, adquiriram recentemente num dos bairros de Lisboa, o Prémio Nobel português aborda os problemas da morte e os dramas da vida (que se agravariam caso o homem deixasse de morrer, sustenta), a presença da música na sua obra em geral e neste livro em particular, e a forma como se desenvolve o seu processo de criação literária.

Embora reafirme que os seus livros não são autobiográficos, o escritor levanta o véu de algumas experiências pessoais presentes nesta obra e em "A Jangada de Pedra". E admite que este romance - cujo tema e título, diz, se lhe "apresentaram" subitamente, como é hábito desde "O Memorial do Convento" - possa ser o último.

MIL FOLHAS - Os seus romances partem quase todos de uma impossibilidade. De Blimunda ver através da pele; de Pessoa sair do Cemitério dos Prazeres e passear por Lisboa com Ricardo Reis...

JOSÉ SARAMAGO - ... da Península que se vai embora...

P. - ... de toda a gente cegar, de todos votarem em branco...

É na porfiada procura desta impossível hipótese que anda, no intervalo dos seus romances?

R. - Não. Só há pouco tempo é que me apercebi disso: andava a seguir um caminho aparentemente deliberado mas que não o era. A Blimunda [personagem de "Memorial do Convento"], os cruzados da "História do Cerco de Lisboa", tudo isso aconteceu sem que eu me apercebesse que cada livro desses partia de uma impossibilidade ou de uma improbabilidade. Como se eu precisasse de algo que tivesse de demonstrar. Não para fazer do improvável provável, nem do impossível possível, mas propondo ao leitor um pacto: "Vamos ver o que acontece depois." E o que acontece depois é pura lógica.

P. - Tem acontecido igualmente nos seus livros outra coisa que é já quase uma regra: a ideia e, às vezes, até o título lhe surgirem em situações improváveis.

R. - Praticamente todos, se exceptuar "Levantado do Chão", um livro apontado, desde o princípio, a um objectivo e que não nasce de qualquer iluminação súbita. E também o "Evangelho Segundo Jesus Cristo", que, como contei já, nasceu de uma ilusão de óptica.

P. - O que o inscreve, de algum modo, nesta linha...

R. - Sim. O que deve ficar claro é que eu nunca me pus a procurar um assunto para um romance.

P. - O que é de novo surpreendente. Num homem como José Saramago, que age por convicções, que não escreve por escrever, surge este elemento estranho, uma espécie de comando à distância da inspiração. Onde não há o suor.

R. - É como quem diz... Não suo à procura do assunto mas suo - e de que modo! -, como qualquer outro, enquanto estou ocupado com o trabalho. É certo que os meus livros não se repetem. Até agora, pelo menos, nunca aproveitei um filão, do género: "Como o "Memorial [do Convento"] saiu bem, vou agora escrever o Memorial das Águas Livres..." Creio que o que se passa é outra coisa de muito mais simples: embora não escreva os mesmos livros, eu escrevo a mesma pessoa. Sem que os meus livros tenham nada de confessional, vivências próprias minhas, nada. Com uma excepção...

P. - Qual?

R. - Em "A Jangada de Pedra", quando no Hotel Bragança a Joana Carda vem encontrar-se com o José Anaiço. Há uma emoção, um choque nessa aproximação ["Avança para ela, e este movimento, lançado na mesma direcção, vai juntar-se à força que empurra, sem recurso nem resistência, a figura da jangada de que o Hotel Bragança, neste preciso instante, é carranca e castelo de proa (...). Os olhos têm uma cor de céu novo, Que é um céu novo, que cor tem, onde é que eu fui buscar esta ideia, pensamento de José Anaiço, e em voz alta, Sente-se por favor, não esteja de pé. Sentou-se ela, sentou-se ele, O senhor chama-se, José Anaiço, O meu nome é Joana Carda, Muito gosto", pp. 120-121] e isso, enfim, fica dito de uma vez: reflecte o encontro com a [mulher do escritor] Pilar.

P. - Nunca escreve o mesmo romance, mas é sempre a mesma pessoa, dizia.

R. - Aquilo que eu quero no fundo é passar para o papel as coisas que me preocupam. Não escrever histórias por contar histórias, o que seria perfeitamente legítimo.

P. - Lá está: uma vez que os títulos e o tema lhe surgem de inspiração súbita, parece que não é o Saramago que escolhe o tema, mas o tema que o comanda.

R. - O tema é algo que apenas se me apresentou. Estava aí - no caso deste livro, está presente nas preocupações de toda a gente, com maior ou menor violência. Há depois coisas interessantes e reconhecíveis também: por que é que, não tendo nunca vivido só, praticamente todos os meus personagens masculinos são homens que vivem em solidão? Pode dizer-se: porque é uma maneira mais fácil de contar uma história do que meter uma família de três pessoas...

P. - O estranho nesta situação toda que vem descrevendo é vermos um materialista, no sentido filosófico do termo, a agir de uma forma quase esotérica.

R. - Quem me vir passar na rua não dirá, "vai ali um materialista", mas sim, "vai ali uma pessoa que tem as suas ideias, as suas opiniões, os seus sustos, as suas esperanças". Não se veja nisso uma espécie de determinismo que nos amarra a um procedimento.

P. - O que há aqui, se me permite, são determinismos a mais, acasos a mais. Isto de provavelmente, algures, no calendário do próximo ano, numa sua viagem ou ao acordar, de noite, receber uma ideia salvadora para um novo livro...

R. - Pode dizer-se assim, "uma ideia salvadora", uma ideia que me permite continuar a escrever. Mas se nós pensarmos na quantidade de ideias que nos atravessam a cabeça ao longo do dia, por associação de ideias, ou por outro motivo, veremos que poderia passar, a qualquer um de nós, uma ideia que, se formos escritores, nos pode ser útil. Mas nem todos somos escritores. Pela cabeça de outras pessoas provavelmente têm passado ideias que muito me conviriam a mim...

Viver eternamente nunca podia ser uma coisa boa

P. - A ideia deste livro - penso que todos os leitores o sabem já, pelas múltiplas entrevistas que tem dado nos últimos dias - resume-se numa frase: num certo dia num certo país, as pessoas descobrem que deixaram de morrer.

R. - Assim é. Embora a ideia inicial não fosse tão clara. Não se tratava no imediato de que a morte deixasse de matar, mas da impossibilidade de a morte matar determinada pessoa.

P. - No livro isso surge no fim. Para alguns leitores como aquele que o entrevista agora, fez muito bem, porque o efeito é semelhante ao da cereja no bolo.

R. - Os meus livros partem de uma ideia que se apresenta, mas ela não vem armada e equipada. A partir daí há que contar a história. Este livro, portanto, ia ser uma coisa e ter um título que nem sequer era este, mas um banalíssimo "O Sorriso da Morte", como se a morte tentasse divertir-se à nossa custa. É quando a história se vai transformando - pouco tempo depois, aliás -, que se me apresenta o título que convinha à história que eu, agora sim, já queria contar: "As Intermitências da Morte".

P. - Primeira surpresa: o fim da morte, ao contrário de trazer prazer àquela comunidade, é um pesadelo.

R. - Passado um primeiro momento de alegria, a realidade começa logo a mostrar-nos que as coisas não são tão simples. Além de que viver eternamente nunca podia ser uma coisa boa.

P. - Mas essa é a aspiração do homem. Quando o homem inventa a religião, como diz Saramago, inventa a eternidade na outra vida.

R. - Inventou isso como inventou outras coisas. Mas enfim, paremos um pouquinho a pensar: viver eternamente? Não é viver muito, que é a aspiração humana. Viver eternamente seria estar condenado a uma velhice eterna. Salvo se o tempo parasse. E isso não está no livro. Mas teria também efeitos perversos. No fundo, o livro empurra uma porta aberta. Diz aquilo que todos já sabemos: que temos que morrer. Mas talvez mostre, com mais clareza, que temos que morrer para viver. Se não, a vida seria insuportável.

P. - Na segunda parte, explora uma segunda situação: a morte avisa o homem, oito dias antes, para que ele possa despedir-se da vida. E aí as pessoas voltam a ser infelizes.

R. - Uma coisa é viver sabendo que chegará o dia, outra é viver com prazo. Numa doença, apesar de tudo, o médico pode ter-se enganado.

P. - Aqui trata-se de uma carta violeta e violenta.

R. - Mandada por quem pode, e que diz: você agora só tem uma semana.

A música e a curiosidade fragilizam a morte

P. - Numa terceira parte, o livro dá uma volta e - ficámos agora a sabê-lo - retorna à ideia original. Pela primeira vez a morte não só deixa de tudo poder, como perde o carácter implacável que lhe é próprio. A música fragiliza-a. Porquê?

R. - Ela é fragilizada não só através da música, mas daquilo que é talvez o mais permanente na natureza humana: a curiosidade. A tal carta [com a morte anunciada] não chega ao seu destino, ela impacienta-se e toma a figura humana, decidida a entregar a carta ao destinatário. Mas é tocada talvez pela circunstância de se tratar de um músico, violoncelista. Todos vimos representações medievais da morte tocando um instrumento, supõe-se que ela toca e nós dançamos, o que pressupõe que ela tenha conhecimentos musicais. Basta a "Marcha Fúnebre", de Chopin, que a acompanha tantas e tantas vezes... Vai encontrar-se, então, com um homem, que tem um cão, uma vez mais um cão...

P. - ... isso é Saramago...

R. - ... para que ele não esteja completamente só. E passa da impaciência à curiosidade de mulher, em relação ao homem.

P. - Vai a um concerto ouvir um solo do violoncelista. De quem sabemos apenas, além da profissão, do cão e da solidão, que se sente retratado no estudo opus 25, n.º 9, em sol bemol maior, de Chopin (58 segundos).

R. - Ou 57, ou 59, conforme a execução seja mais ou menos rápida.

P. - A sedução chega, pois, pela música. É melómano?

R. - Não gosto da palavra. O sufixo vem de mania. Não gosto mesmo nada da palavra. Mas gosto de música, sim. Muito, muito. E calhou. No "Manual de Pintura e Caligrafia" era um pintor. Não é que eu ande agora à procura de todas as diferentes actividades artísticas. Mas o acto musical (não o acto de compor, a que sou completamente alheio: tomo-o como uma capacidade sobre-humana) - a sala de espectáculos, a luz que desce, os instrumentos que se afinam, o maestro que entra e que no livro associo à ideia do xamã que convoca as forças mágicas, não do além, mas os sons que estão contidos nos instrumentos. E a morte ali. A morte, que provavelmente nunca se tinha apercebido de que aquilo podia ser assim. Aí é o ponto de inflexão, em que ela se torna frágil. Embora já antes [o tenha sido], quando vai pela primeira vez a casa dele e se ajoelha. Não há música, porque é o silêncio da noite, mas ela vê, sobre uma cadeira, a suíte n.º 6 de João Sebastião Bach. Sabendo ela música, podemos imaginar que ela está a lê-la. E de repente treme e tem esse movimento de ombros que em nós significa choro convulsivo.

P. - O prelúdio dessa suíte é essencial, porque é depois de a tocar que fazem amor.

R. - Nessa altura ele toca a suíte inteira. Como músico, tem problemas no prelúdio, e não é de estranhar que os tenha porque qualquer violoncelista o dirá. As seis suítes foram compostas por Bach para um instrumento do mesmo tipo que o violoncelo mas que já não existe. Digamos que é um violoncelo com cinco cordas (o violoncelo agora tem seis). De forma que isso cria ao executante dificuldades tremendas.

A utopia não existe, mas não há nada melhor que procurar

P. - Os seus livros transportam uma grande carga de incomodidade e de protesto. Este livro surpreende, de novo, porque transmite uma grande esperança. A música e o amor, no fundo, salvam o homem.

R. - O que é que acontece no dia seguinte?

P. - "Ninguém morreu." Sabe que isso vai ser lido de duas maneiras. Os leitores que apesar de tudo gostavam de fazer a experiência pensam que isso é uma esperança. O autor, pelos vistos, acha que é uma maldição?

R. - É uma maldição. A morte meteu-se numa alhada que resulta: a soberana, a imperatriz, ao assumir a forma humana assumiu também todas as fragilidades humanas. Ela, que nunca dormia, adormece; ela, que nunca tinha feito amor, faz amor.

P. - Três vezes seguidas, estupendo.

R. - Diz, "eu podia deixar esta carta aqui, metê-la debaixo da almofada, entalá-la entre as cordas do violoncelo, pô-la sobre a mesa", mas não o faz.

P. - Condena-se a si mesma.

R. - Não. Despertará daquele sonho, daquele idílio de mulher que ama aquele homem. Porque ela não é uma mulher. Ela é a morte. O final do livro, que reconduz tudo ao princípio, também implica que tudo quanto aconteceu no princípio vai acontecer outra vez. Na relação com a morte, estamos num beco sem saída. Entramos na vida e essa vida não tem outra saída senão esse muro. Para além dele, não podemos continuar.

P. - Estas constituem as traves-mestras do romance. A argamassa são os problemas: as máfias, exactamente; a velhice; alguns dos dramas da humanidade. De que os seus livros falam sempre. Como se caminhássemos para a felicidade na terra...

R. - A história diz-nos o que fomos mas não sabemos o que vamos ser. Há poucos dias foi autorizada nos EUA a implantação de uma cara nova. A pessoa não está contente com a sua cara e vai pôr outra. Isto é o princípio de algo que não podemos imaginar. Quando dizemos "agora não pode ser, mas daqui por 200 anos...", estamos a dizer um disparate. Ninguém nos garante que os que vivam daqui por 200 anos estejam interessados na nossa utopia: podem ter outra, ou não ter nenhuma. Quando há tempos, no Fórum Social de Porto Alegre, disse que, se tivesse poder para isso, tiraria a palavra "utopia" dos dicionários, ficaram muito escandalizados. Expliquei depois onde queria chegar e alguns entenderam.

P. - Se olharmos para aquilo que tem sido a sua vida, ela é a perseguição de utopia da sociedade fraterna, igualitária. Tendo em conta o que acaba de dizer, está à busca daquilo que não existe.

R. - Mas não temos outro remédio senão continuar à procura. Não temos nada melhor que procurar.

P. - Lá está a pulsão do infinitamente bom.

R. - Não sabemos o que é ser infinitamente bom. Sabemos o que é ser relativamente bom. E sabemos que não somos capazes de ser bons toda a vida e em todas as circunstâncias. Falhamos muito. E depois reconsideramos, o que não quer dizer que o reconheçamos publicamente. São, enfim, histórias da terra. E que aqui se vivem e aqui se acabam. O universo não tem notícia da nossa existência.

P. - Não sabe sobre o que vai escrever, pois vai ficar à espera da tal ideia salvadora. Mas como acaba sempre por falar em problemas concretos, pergunto-lhe, a fechar: o que é que tem ainda para dizer às pessoas?

R. - Não sei. Provavelmente já chegou o dia em que já não terei nada mais a dizer, depois deste livro. Dentro de alguns meses - ou semanas, ou até dias, ou até horas - talvez eu tenha uma resposta para si.

DESTAQUES:

Os meus livros partem de uma ideia que se apresenta, mas ela não vem armada e equipada. A partir daí há que contar a história.

Há mais relação com a música dentro de uma obra do que aquilo que tem a ver com as referências explícitas à música. (...) Pode acontecer que eu acrescente mais duas palavrinhas ou três, que não fazem falta nenhuma [à frase]. Não fazem falta ao sentido, mas o tempo do compasso não pode ficar no ar.

A fé, que tanto auxilia as pessoas, é uma espécie de muro circular para além do qual não se vê nada. (...) A finitude é o destino de tudo. O Sol um dia apaga-se.

O universo não tem notícia da nossa existência.


Bach, o compasso das palavras e as vírgulas no sítio

A música desempenha um papel decisivo na trama de "As Intermitências da Morte". Mas também na sua escrita, em geral. José Saramago diz que as suas frases obedecem muitas vezes ao tempo de um compasso musical interior.

P. - Ao escolher a suíte n.º 6 em ré maior BWV 1012, de Johann Sebastian Bach, fê-lo porquê? Esteve à procura na sua discoteca?
R. - Tinha de encontrar uma composição para violoncelo solo. Das seis suítes de Bach, que me pus a escutar com mais atenção, a n.º 6 foi aquela que ouvi com mais força.

P.- Ficamos no entanto sem saber de que peça e autor é o solo que o violoncelista faz no concerto a que a morte assiste.
R.- Não. Acontece em muitas peças, a orquestra calar-se para ouvirmos em breves compassos um instrumento determinado - violoncelo, flauta, oboé.

P. - Há três compositores nomeados no livro: Bach, Chopin e Schuman. Escreveu a ouvi-los?
R. - Schuman não, porque não era importante para aquilo que eu queria. Mas fui ouvir outra vez o estudo de Chopin [opus 25, n.º 9, em sol bemol maior], para me confirmar na ideia.

P. - O opus 10 talvez tivesse momentos mais marcantes, desculpe o autor a impertinência...
R. - O que conta, como costumo dizer, é o momento em que as coisas se passam. Lembro-me da primeira vez que entrei na Biblioteca Laurenziana, em Florença, e me encontrei diante da porta desenhada por Miguel Ângelo - incrível onde pode chegar a simplicidade e ao mesmo tempo a expressão da beleza total. Entrei sozinho, havia calor, olhei para a porta e pus-me a tremer dos pés à cabeça. Acho que é a porta, mas foi naquele momento. O encontro do que está para ser visto e daquele que pode ver. Voltando ao estudo, tenho de dizer que não encontrei nele tudo aquilo que lá tinha encontrado antes, até fiquei surpreendido, enfim, era aquele, era aquele e não se fala mais nisso. Mas há uma referência nos "Cadernos de Lanzarote" em que eu digo que, se pudesse ver-me retratado numa composição musical, era ali.

P. - Mais um dado autobiográfico a espreitar na obra...
R. - Realmente. Como disse, não faço o uso literário de factos da minha biografia. Mas este está escrito, já não me lembro em que data. O que não significa que o violoncelista seja uma espécie de "alter ego". Ouvi durante algum tempo a suíte n.º 6, mas com a consciência de que não estava a ouvi-la. A música, da mesma maneira que a pintura, creio, não nos deixa fazer outra coisa ao mesmo tempo.

P. - A escrita nesses momentos em que descreve a música atinge um ponto elevadíssimo, se me é permitida a opinião, daí a ideia com que fiquei que havia nisso algo de vivido.
R. - Não digo que o acto de escrever tenha semelhanças com outro tipo de criação artística. Mas há momentos (voltamos sempre aos momentos) em que pode escrever-se com uma relativa frieza, calculando a frase, a palavra que é necessário encontrar; e outros em que a escrita nos leva a uma espécie de...

P - ... levitação literária?...
R - É indefinível. Há uma espécie de tremor interno, de vibração. Penso que há mais relação com a música dentro de uma obra do que aquilo que tem a ver com as referências explícitas à música. Quando, por exemplo, numa frase que acabo de escrever e em que já disse tudo o que tinha para dizer, eu sinto que me falta qualquer coisa, em termos de compasso musical. E pode acontecer que eu acrescente mais duas palavrinhas ou três, que não fazem falta nenhuma. Não fazem falta ao sentido, mas o tempo do compasso não pode ficar no ar.

P. - Este livro ironiza com a sua própria maneira de escrever. Fala das "monstruosidades filológicas", por exemplo; utiliza algumas palavras e expressões que não costumamos encontrar no seu léxico - "encher, atar e pôr no fumeiro"; "dinheirame", "canhenho"; recorre a expressões estrangeiras - "know-how", "background", "last but not the least". E a certa altura começa a escrever, deixe-me fazer a comparação, como toda a gente: parágrafos, vírgulas, maiúsculas. Aí mudou o compasso?
R. - Trata-se antes de tentar reunir no mesmo espaço palavras que se usam pouco, mas que, pelo menos algumas delas, se usaram muito num passado não muito distante, como "canhenho" e "dinheirame". São ecos do próprio passado como falante e como ouvinte da língua. Há uma tonalidade irónica no uso de algumas dessas palavras. O "know-how" e outras semelhantes é outra forma de ironizar sobre o linguajar actual. Falo sempre de uma experiência vivida no Rio de Janeiro, há anos, num hotel, em que esperava uma mensagem. Liguei para a recepção e a moça (para usar o termo de lá) que me atendeu disse: "Um momento, vou checar." Aquilo chocou-me profundamente. É um barbarismo total, quando não faltam verbos. Embora entre nós e os brasileiros haja uma diferença. Nós somos muito respeitosos pelas línguas estrangeiras e usamo-las tal qual; eles adaptam a palavra - o "free-lance" no Brasil é, simplesmente, "frila". São mais abertos. Vão fazer do português não sei que espécie de língua, mas enfim, logo veremos.

P. - E quanto à tal parte em que começa a escrever de forma tradicional, digamos assim: frases curtas, a vírgula no sítio?
R. - Não é premeditado. No fundo, é aquilo mesmo que eu estou a contar e que de uma certa maneira impõe uma outra construção da frase, ou uma sintaxe mais tradicional, mais respeitosa da morte. Mas imediatamente pode acontecer que algo que se introduz ali force a quebrar aquele ritmo.


O Sol, um dia, apaga-se

Os limites do universo estão a 13 mil milhões de anos-luz. E o mais fascinante é a quantidade de vazio que há no universo. Mas a consciência cósmica do homem, sustenta Saramago, não tem nada a ver com a "outra" eternidade. "Porque tudo morre."

P. - Para além do fim vida, nada acontece, para si?
R. - Nada. Diz um astrofísico, num livro que li recentemente, que um átomo de oxigénio que entre na respiração de um de nós pode ter saído da boca de Júlio César. Se estudássemos um pouco mais da história do universo, as transformações químicas, físicas por que se passou até chegar a hoje, tínhamos um sentimento de um outro tipo de hereditariedade. Um astrofísico escreveu a seguinte frase, interessantíssima: "O hidrogénio é um gás leve e inodoro que com tempo suficiente se converte em ser humano." Lido e entendido isto, uma pessoa respira com mais amplitude, tem-se uma espécie de consciência cósmica. Que não tem nada que ver com a eternidade, com a outra eternidade. Porque tudo morre.

P. - Como se compreende, então, a vontade, o "élan" do homem para o infinito?
R. - Há duas maneiras: o infinito no sentido religioso, que não pretende compreender nada (a fé, que tanto auxilia as pessoas, é uma espécie de muro circular para além do qual não se vê nada); ou então essa outra ideia de infinito, que tem a ver com o universo, com esta "coisa".

P. - A finitude retira sentido à vida.
R. - Mas a finitude é o destino de tudo. O Sol, um dia, apaga-se.

P. - Há outros sóis.
P. - Só na nossa querida galáxia calcula-se que há 200 mil milhões de estrelas. Calcula a astrofísica que no universo haja 400 mil milhões de galáxias. Os limites do universo, calcula-se agora, estão a 13 mil milhões de anos-luz. E o mais fascinante é a quantidade de vazio que há no universo.

P. - Por isso mesmo é que os seus, em breve, 83 anos, perante isso, sabem a pouco. Daí ao passo que o homem dá inventando Deus não acha que há uma sequência lógica?
R. - Mas talvez não se fosse tão longe se não fosse a morte. Daí no livro dizer-se que Deus e a morte são as duas faces da mesma moeda. Não podem passar um sem outro. Sem morte não haveria Deus, porque não o inventariam. Mas sem Deus não haveria morte, porque Deus tinha de fazer a vida finita.

P. - Há uma outra componente na vida do homem: a procura do bem, da excelência, uma aspiração ao melhor...
R. - E a tendência do homem para o mal é uma tendência para o inverso de Deus, que seria o demónio, e o inverso do céu, que seria o inferno? Ainda estamos aí?

P. - Não sei onde é que estamos. Mas sei que o José Saramago, como cidadão, sempre lutou pela superação, pelo homem, das pulsões para o negativo.
R. - Isso não supõe que haja um Deus que está a olhar para mim com olhos atentos, o que me obriga a ter muito cuidado com o que faço para não lhe desagradar.

P. - Na sua obra diz recorrentemente que não foi para isto que viemos para cá.
R. - O que digo às vezes é que dá vontade de voltar ao zero e começar outra vez, com a preocupação de vermos onde é que nos equivocámos.

P. - Nesse sentido, quem é que nos pôs cá?
R. - O que faz a água? Dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio. Nada mais.

P. - É muito pouco, para quem põe a morte a chorar ao ouvir uma suíte de Bach.
R. - Quando pergunto, na "Jangada de Pedra", o que é que explica que o macaco tenha chegado à bomba atómica, foi simplesmente o tempo. O tempo da tal frase do hidrogénio. Há uma pergunta que me parece dever ser formulada e para a qual não creio que haja resposta: que motivo teria Deus para fazer o universo? Só para que num planeta pequeníssimo de um galáxia pudesse ter nascido um animal determinado que iria ter um processo evolutivo que chegou a isto?

P. - Faço-lhe uma outra pergunta, na linha em que Saramago escreve: por que motivo então o homem, condenado afinal a morrer, a cegar, a perder a lucidez, haveria de querer ser melhor?
R. - A alternativa a essa pergunta seria esta: e por que é que haveria de querer ser pior?

P. - Essa é a forma mais fácil de satisfazer melhor os maus instintos.
P. -... Creio que os instintos em princípio não são bons nem maus, são simplesmente instintos. Quando a louva-a-deus, depois da cópula, devora o macho, não está a violar nenhum código ético. Um leão, se o julgarmos pela bitola da ética humana, quando mata a pobre gazela, está a obedecer aos seus maus instintos?

P. - O homem é aquele que se libertou de algumas dessas sujeições. A isso chamamos "civilização".
R. - Mas sempre haverá gente para matar os frangos que nós comemos na mesa ou para degolar o porco donde depois vamos extrair umas suculentíssimas costeletas. Se milhões de animais são sacrificados todos os dias para que possamos alimentarmo-nos, também é certo que há a outra morte, a morte malvada, sanguinária, cruel; a delinquência, as máfias, a extorsão, a exploração, o assassinato, a tortura.


Hino à música e ao amor

Um estudo de Chopin serve a José Saramago para descrever a personagem masculina da sua última obra. E a execução de uma suíte de Bach, para um homem - violoncelista de profissão - seduzir a morte-mulher.
O Nobel da Literatura continua a surpreender os seus leitores, pelo inesperado dos temas que aborda e pela forma desconcertante como os desenvolve. A morte foi o tema, desta vez. Num duplo sentido: da morte enquanto inevitabilidade humana; e da morte "imperatriz", a morte da gadanha, que a todos ceifa desde os princípios do tempo.
Fá-lo, como vem acontecendo desde "O Memorial do Convento" - o livro que o consagrou em Portugal e que constitui ainda, mais de duas décadas passadas, o seu ex-líbris, em Portugal e no mundo -, explorando as possibilidades de uma hipótese improvável ou mesmo impossível. No caso: um país (nada a ver com Portugal, ou antes pelo contrário, como se constatará ao longo das páginas) cujos habitantes um dia deixam de morrer.
Embora não formalmente, o livro pode dividir-se em três partes. Numa primeira, à alegria com que as pessoas descobrem que deixaram de morrer - bandeiras nacionais aparecerão em varandas e janelas, fazendo lembrar, como noutros trechos do livro, euforias portuguesas recentes - sucede o pesadelo dos novos problemas que o país enfrenta.
Nos planos familiar (que fazer com o avô moribundo, com a criança em sofrimento?); social e económico (crise nos hospitais, nos "lares do feliz ocaso", nas companhias de seguros, nas agências funerárias); político (como reprimir os cidadãos que levam os familiares ao outro lado da fronteira, onde a morte continua a ceifar vidas? Como lidar com a máfia, que oferece limpeza e discrição no trabalho que às autoridades convém, mas de que não podem tomar conhecimento oficial?); e religioso ("ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja", diz o cardeal, indignado com a comunicação ao país do chefe do Governo, que, mostrando-se decidido a enfrentar todos os problemas, inclusive os morais, que a extinção definitiva da morte suscitaria "no caso, que tudo parece indicar como previsível, de se vir a confirmar").
Na segunda parte, a morte, em mensagem enviada para a televisão, anuncia o "imediato regresso à normalidade", isto é, à morte, que no entanto, a partir de agora, será anunciada com uma semana de antecedência. Para que cada um possa "pôr em ordem o que ainda lhe resta de vida, fazer testamento e dizer adeus à família, pedindo perdão pelo mal feito ou fazendo as pazes com o primo com quem desde há vinte anos estava de relações cortadas".
Na terceira parte, nova inflexão na história, com a morte a encarnar em mulher (bela), pois não resiste a conhecer pessoalmente o destinatário de sucessivas cartas que lhe vêm sendo devolvidas.
O livro atinge aqui - simples opinião de leitor que, passada a surpresa inicial, tardava em aderir - o seu ponto mais alto. Abandonados, praticamente a meio, os dois primeiros filões (social e político, para simplificar), o autor permite-se passar a uma terceira abordagem dramática (a dimensão individual e, diríamos, mais humana) do tema. Que explora desta vez até ao fim. Usando de toda a sua reconhecida capacidade descritiva. E esta, nalguns trechos (curiosamente aqueles que se relacionam com a música e com o amor: o ensaio da orquestra, o concerto público, a execução de suíte de Bach que leva violoncelista e morte-mulher para a cama), equipara-se, literariamente, ao melhor do muito que José Saramago tem oferecido, ao longo dos anos, aos seus leitores.
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As Intermitências da Morte
Autor: José Saramago
Editor: Editorial Caminho
216 págs., 12,60 euros