José Saramago por extenso

12.11.06 at 9:40 da tarde

Saramago em entrevista a Adelino Gomes

Continuo a citar a entrevista conduzida por Adelino Gomes, editada pelo jornal Público de 12 de Novembro:
"[...]
PÚBLICO - Se eu lhe dissesse, depois de ler a sua autobiografia, que foi um salazarista quando era adolescente, o que é que respondia?
JOSÉ SARAMGO - Que nunca fui salazarista.
E que esteve "ligado ao fascismo", como disse em título [na sexta-feira] o Correio da Manhã?
A ignorância tem alguma inconveniência. Quando se junta à estupidez, não há remédio. O que não consigo compreender é que não haja um director ou um chefe de redacção atentos.
Mas sabe que, antes do Correio da Manhã, foi O Estado de S. Paulo [edição do dia 4] quem o escreveu, em título?
É estúpido, evidentemente. Perguntaram o que achava [da confissão] do Günter Grass [no livro Beim Häuten der Zwiebel (Descascando a Cebola), edição em Portugal prevista para o ano que vem, de que fora voluntário nas Wafen-SS, de Hitler, aos 17 anos]. Eu estava bem disposto e respondi dizendo que tinha chegado a altura de fazer uma confissão. Eles tomaram à letra a ironia e disseram isso. No livro, conto que todos fomos da Mocidade Portuguesa. O Correio da Manhã é um eco daquilo que O Estado de S. Paulo escreveu, julgando que tinha na mão um escândalo.
No livro, assinala que, no liceu, conseguiu ficar sempre para último, na fila, e nunca usou a farda.
E escrevo, a propósito, que essa foi a minha primeira vitória contra o fascismo. É preciso ter muito cuidado no uso da ironia com jornalistas. Sobretudo tratando-se de uma resposta por escrito. Ele [o entrevistador brasileiro] não sabia nada [sobre a história da Mocidade Portuguesa].

DEIXEM O GRASS EM PAZ
Ele faz a ligação a Grass, "que confessou, na autobiografia, ter pertencido à juventude hitleriana". Por que é que, a propósito, compreende a confissão tão tardia de Grass?
Ninguém se preocupa muito que as pessoas não revelem os seus segredos. Ninguém os conta, ou conta só algum que casualmente interesse. Todos guardamos segredos. Mas parece, do ponto de vista daqueles que se escandalizaram, que não podemos guardar segredos. Então não vamos guardar segredos, todos. Dizem: "Ah!, mas uma figura pública..."
Uma figura que se assumiu como autoridade moral...
Podia alegar-se aí que Saulo [de Tarso, nome original de S. Paulo] também perseguiu os cristãos e depois se converteu. Evidentemente que teria sido melhor para Grass se o tivesse confessado desde o princípio. Mas ele usou o jogo das meias-verdades.
O que é censurável.
Mas não haverá também aí uma grande hipocrisia das pessoas que se apresentam como grandes virtuosas, honestas, límpidas de carácter, com passados impolutos? Não será antes o caso, tão ansiado por tanta gente, de descobrir os pés de barro dos gigantes que deviam ser de bronze?
Também. Por isso é que aqueles que se agigantam têm que estar preparados para isso.
Não será a história daquele homem que andava de terra em terra à espera de que o trapezista do circo caísse? Tomei partido a favor porque aquilo [que Grass fez] não apaga aquilo que foi o futuro desse tempo. Não tinha o direito de se armar em fiscal moral dos outros? Eu não quero julgar isso. Eu não condeno o Günter Grass. Devia ter sido dito? Pois devia. Mas, pelo menos, já está dito. Deixem agora o homem em paz.

O 25 DE ABRIL FOI UM FOGACHO EM QUE NÓS INGENUAMENTE ACREDITÁMOS
Sondagens recentes, em Portugal e em Espanha, indicam que há gente de cá e de lá disponível para avançar para uma união dos dois países. Independentemente do valor das sondagens, se lhe fizessem a si a pergunta, o que respondia?
Entregava um ensaio de 12 páginas que publiquei há uns 20 anos e que se chama Sobre o meu iberismo.
Pode resumir?
Eu acho que nós estamos cansados. Como portugueses, estamos cansados de viver. Se calhar, a nossa missão histórica acabou.
E agora?
E agora quê? Não sabemos. Passámos séculos de dependência: dependência da Grã-Bretanha, dependência disto, dependência daquilo. Agora somos também dependentes, o que não é vergonha nenhuma: há panelas de barro e há panelas de ferro. Mas aqui falta uma coisa que se chama brio. Cada vez mais. Somos capazes de fogachos, como o 25 de Abril foi - um fogacho em que nós ingenuamente acreditámos. Não era certo, não era possível, não era crível, mas o tempo da felicidade para Portugal chegou então. Durou, como as rosas de Malherbe, l"espace d"un matin. Acabou.
Deixou coisas boas.
Não. Não deixou nada. As coisas boas que criou, eliminou-as todas.
Os três "D" de que se falava: Democracia, Desenvolvimento, Descolonização? Todas as colónias são independentes.
Não tínhamos outro remédio se não sair de lá, homem. Estávamos simplesmente derrotados.
Salazar estava [politicamente] derrotado desde a II Guerra Mundial, toda a gente acreditava que vinha a democracia para Portugal, sopravam ventos de descolonização e os grandes impérios acolheram-nos, mas Portugal não.
Isso só prova que países democráticos não se importavam nada de conviver com países não democráticos desde que isso, de uma forma ou de outra, servisse os seus interesses. E a história continua, veja-se o caso da China.
Foi preciso jovens militares virem acertar o relógio da História, que tinha os ponteiros atrasados em Portugal.
Talvez. Mas nós estávamos na Europa, numa comunidade como esta não era possível manter uma ditadura, mesmo que ela fosse ou se tornasse soft. Acabaríamos por fazer aquilo que a Espanha fez, mas, para isso, também precisou que morresse o ditador: uma transição.
Influenciada por nós, como aconteceu, aliás, noutros países do Mundo.
Há dias Freitas do Amaral contou a história de quando chamou os embaixadores dos países do Conselho de Segurança a quem comunicou estar a pensar reformá-lo. Resposta de todos eles: "Nem pense nisso. Nós vetamos". O 25 de Abril é uma data, apenas. Converteram-no numa data, nada mais. Já o disse em público e repito: eu já não celebro o 25 de Abril. Há um ante-25 de Abril que eu celebraria, se fosse disso que se tratasse, que é justamente o movimento que levou ao 25 de Abril. Feito por esses militares que a democracia liquidou, na maior parte dos casos, passando-os à reforma, perseguindo-os. A esses, sim, a esses tiro eu o meu chapéu. Mas há o tempo que vem depois. Muitos pensaram que tinha chegado a hora de mudar o país, que era de uma certa maneira mudar a História ou ter, sobre ela, outra visão. Não vale a pena entrar nos excessos, na reforma agrária, nas nacionalizações, mas isso é que eram consequências do 25 de Abril.

NÃO ACEITO QUE SE DIGA QUE FICÁMOS COM A DEMOCRACIA
Volto aos três "D".
Não aceito que se diga que ficámos com a Democracia.
E também com a independência das colónias; e com algum desenvolvimento...
O desenvolvimento em Espanha, nos anos 60, ocorreu sob o franquismo. Não foi necessário uma revolução. A China não é já uma ameaça para os EUA? [mostra uma entrevista que deu ao Nouvel Observateur, quando foi lançar a Paris o Ensaio sobre a Lucidez].
Nessa entrevista diz: não há democracia, mas um poder que está por cima dos governantes em quem votámos e que não são, afinal, quem decide. A pergunta que dá vontade de lhe dirigir, ao senhor, um céptico que aderiu a uma ideologia que transportava o optimismo histórico é: o que fazer, então?
O que fazer? Temos um cerimonial democrático cada vez mais falto de vergonha: campanhas eleitorais que custam rios de dinheiro, subsidiadas muitas vezes não se sabe por quem ou demasiado se sabe por quem; promessas que se sabe de antemão não serão cumpridas; processos cosméticos do género de termos um Governo de um partido socialista mas não um Governo socialista. Porque, aqui e em qualquer parte do Mundo, o partido no Governo vai poder chamar-se o que quiser porque vai ter que fazer exactamente a mesma política. Uma comédia de enganos. Não servimos para nada mais senão para homologar coisas que não têm nada que ver connosco porque não podemos influir nelas. Aristóteles, na Política, dizia que, num Governo democrático bem entendido, o governo da Polis, os povos deviam estar em maioria, pois são a maioria.
É esse o princípio do sistema representativo...
No livro A Morgadinha dos Canaviais, Júlio Diniz, um escritor suave, descreve aquela situação dos votos que se rasgam e são substituídos à última hora para eleger não uma pessoa mas a outra. Há coisas que deviam voltar a ser lidas.
E, no entanto, é extraordinário o avanço nesse campo desde essa altura, entre nós.
Mas quem é que não avançou nestes dois séculos? Seremos excepção? O extraordinário seria não termos avançado. Eu talvez seja demasiado céptico, mas você é demasiado optimista.

É PRECISO MUDARMOS A VIDA SE QUEREMOS MUDAR DE VIDA
O seu discurso quer mostrar-nos que a banalidade está instalada no mundo e que não há nada a fazer. Mas ela é mudável. Este seu livro é a prova viva de que um homem que nasceu numa aldeia entre gente pobre e analfabeta pode libertar-se daquilo que parece ser o seu destino.
Ela é mudável, de acordo. Mas então mudemo-la! O que eu ando a dizer já há tempos é que é preciso mudarmos a vida se queremos mudar de vida. E isto aplica-se a tudo.
Esclareça-me qual o 25 de Abril que valia a pena celebrar?
Um 25 de Abril que realmente tivesse mudado a mentalidade dos portugueses. Que tivesse feito de nós pessoas capazes de construir. Que, dentro de nós, eliminássemos essa espécie de fatalidade de que, desde o D. Sebastião, temos sempre que depender de alguém que nos ajude a atravessar a rua.
Por exemplo?
Transformações como as nacionalizações. Agora, até para obter fundos para pagar dívidas se privatiza e se vende. Não foi isto que nós quisemos. Já sabemos que não há independência, que a soberania é relativa, que a autonomia é consoante os interesses dos vizinhos, mas podíamos ser outra coisa e não somos. Almeida Garrett escreveu: "A terra é pequena. E a gente que nela vive também não é grande".
Alguma vez se interrogou sobre se, com esse 25 de Abril com que sonhava, não estaríamos hoje - tendo em conta o que se passou noutras latitudes - num 25 de Abril completamente pervertido, pior e, seguramente, com menos liberdade?
Sou suficientemente céptico para lhe responder assim: considerando a palavra "não" a mais importante do vocabulário, posso dizer que uma revolução é um "não". Mas sei, perfeitamente, que, feita a revolução, o "sim" recuperará posições pouco a pouco. Tanto faz num sistema capitalista ou socialista. O sistema ensina hipocrisia a partir dos bancos da escola. Não mudaremos a vida, se não mudarmos de vida."

Ainda com assinatura de Adelino Gomes:

"O HOMEM A QUEM ROUBARAM AS OLIVEIRAS DA INFÂNCIA
"Vamos! Vamos!", diz, poucos minutos após a primeira paragem.
Foi ele quem chamou a atenção para a curva do rio. Um carro desviara-se da estrada principal. Preparamo-nos para esclarecer as razões da inusitada incursão de um casal entre uma e a outra estreita margens, mas o escritor Nobel mostra-se impaciente. Tem pressa de chegar à Azinhaga, a terra onde nasceu.
O que vê, porém, à medida que avança o carro - no qual viajam, além dele próprio, José Saramago, a mulher, Pilar, o fotógrafo espanhol Jose Manuel Navia e este jornalista do PÚBLICO - deixa-o inconformado.
- Aqui havia oliveiras - começa por constatar. - Roubaram-me as minhas oliveiras! - protesta, por várias vezes, à medida que desfila aos nossos olhos a interminável, monótona paisagem, nua de árvores.
- Olhem para estes campos [de milho transgénico]. Aceitaram as indemnizações que a CEE ofereceu e agora temos isto, tudo igual...
Iniciámos a peregrinação a pé pela aldeia. Quase nenhuma emoção perante o lugar em que outrora se ergueu a casa natal. Está guardada para mais à frente, no que resta da casa que foi dos avós maternos.
Pilar acha que deve comprar o espaço. Não parece ser essa a sua ideia
Desfia recordações para o fotógrafo espanhol, que pretende ilustrar, com imagens desta peregrinação, o texto que a revista de domingo do El Pais lhe vai dedicar, na série com grandes escritores mundiais deste Verão de 2001.
Os locais gostam de lembrar que a aldeia, administrativamente situada no concelho da Golegã, tem foral desde D. Sancho II e que é a mesma a que, antes da fundação de Portugal, chamavam Santa Maria do Almonda. Características edificações na rua principal constituem a prova de que ali se ergueram, a partir do século XII, palácios, solares, igrejas e capelas, o mesmo será dizer, "ali se foi construindo um país".
A Azinhaga foi, nos célebres concursos salazaristas de António Ferro, a "aldeia mais portuguesa do Ribatejo". O contacto com os toiros, nas fainas do campo, fez da raça de maiorais desta terra "de lezírias e espargais", pelo saber, os mais famosos campinos das terras da Borda d"Água, diz uma nota do rancho folclórico "Os Campinos da Azinhaga", lida durante a breve paragem para almoço.
Não foi para estas divagações, contudo, que José Saramago se deslocou de Lisboa. Sobe, e nós com ele, ao campanário da igreja. Dá um beijo a uma prima, encontrada na rua. Ruma ao Paul do Boquilobo, para onde gostava de ir, em longas viagens de dias, e para onde - torna-se claro nos gestos, nas recordações, na insistência em ir até onde o carro pode chegar - não se importava nada de partir agora mesmo em nova aventura. Boquilobo, oferecida, depois da crise de 1385 por D. João I a João das Regras com a legenda "Melhor lhe dera se melhor houvera".
Passados cinco anos, estas recordações tomam a forma de livro - As Pequenas Memórias (Editorial Caminho) - que aqui mesmo vai ser lançado, em cerimónia de ressonância internacional, na próxima quinta-feira, 16, num regresso simbólico aos lugares da infância e adolescência do escritor, na aldeia ribatejana.
Casas, oliveiras, arbustos, dois rios, um pântano. Que importa que deles só restem os dois últimos? Que tenha desaparecido sob um monte de escombros a casa que foi a pobríssima morada dos avós maternos de quem os leitores já sabem os nomes, desde o discurso de aceitação do Nobel da literatura, em 1998 (Josefa e Jerónimo se chamam, este último, analfabeto, "o mais sábio dos homens" que Saramago conheceu)? Que importam os estragos do prémio da CEE sobre os olivais desaparecidos?
A cada instante, José levantará as paredes da casa branca, plantará as oliveiras, fechará o postigo da porta e a cancela do quintal e dirá: "Avó, vou por aí dar uma volta", e ouvi-la-á responder: "Vai, vai", meterá "um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge", pegará num pau para qualquer mau encontro canino e partirá para uma das quatro partes em que o universo se dividia então para a criança "melancólica", para o adolescente "contemplativo e não raro triste" que era ele: o rio, "os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado", a mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o Tejo, um pouco à frente da confluência com o Almonda, ou o Paul do Boquilobo, "um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso".
Tudo nítido setenta anos depois - paisagem, gentes, afectos -, numa revisitação através do "poder reconstrutor da memória". E da literatura. Adelino Gomes".