Transcrevo do JL nº 942 uma recensão crítica de Maria Alzira Seixo a As Pequenas Memórias:
"História do Lagarto Verde
Saramago dá-nos, com As Pequenas Memórias, o trigésimo nono volume da sua obra. Mais consagrada ao romance, é de facto obra de polígrafo: integra outros géneros de ficção (conto e novela), significativa produção de teatro, escritos opinativos e autobiográficos, livros de crónicas e de poesia que lhe marcam o início da carreira e nos quais encontramos em esboço muita da sua temática posterior, e textos híbridos que equacionam em densidade o seu modo de articular literatura e mundo: O Ano de 1993 e Viagem a Portugal. Após Cadernos de Lanzarote, o entendimento do eu como objecto de reflexão e não apenas ponto de vista dá agora outro resultado de escrita, que o autor judiciosamente apelida de memórias.
O memorialismo parte do eu, mas enquanto postura narrativa de quem dá a ver as coisas e sabe que se arrisca a ser comprovado, ou não, no que conta; o memorialismo não se ocupa do eu para o narrar como objecto privilegiado, caso em que resvala para a autobiografia, e por isso alcança a sua integração reflectida na comunidade e, nesse sentido, ultrapassa a subjectividade para traçar lugares e tempos que valem por interesse próprio, enquanto modos de vida idos que são raízes e alimento da sociedade actual. Como fez Saint-Simon, o memorialista que Proust punha acima de todos, seguindo-o na sua obra compósita de memórias, autobiografia e ensaio, que é sobretudo ficção.
Quem ler As Pequenas Memórias vê satisfeita a curiosidade de saber como viveu e cresceu este vulto das Letras, e será surpreendido pela lição de briosa humildade que elas contêm, assim como pelo exemplo de trabalho e estudo que fazem, do menino rústico e sem condições, a culta e interventiva personalidade que é Saramago no mundo de hoje. Este exemplo não pode ser entendido como expoente de regra, pois é excepção, mas permite ponderar os resultados do facilitismo no ensino actual, assim como condições que, proporcionadas sem sentido moral e afectivo, não dão frutos. Os objectivos morais não emergem na escrita do texto, mas o certo é que nele se fala muito de costumes. Que erguem diante de nós terra e gente, um estilo de vida do campesinato e de classes urbanas desfavorecidas. Sem propaganda nem miserabilismo. Na real.
Um lagarto na memória
Na real, é como quem diz. Naquela camada de real indestrinçável de factos, emoções, ecos, pressentimentos, interpretações e olvido recuperado que leva a acarinhar ou idealizar a vida passada, mesmo se foi difícil. E a isolar nela grandes acontecimentos e pormenores fortuitos que, postos por escrito, os irmanam em poder de repercussão. Por isso acho nestas memórias do «rapazinho da Azinhaga» (a que o autor chama «as memórias pequenas de quando fui pequeno») a história do lagarto verde.
Dir-se-á, com razão, que o livro dá conta da expressão indelével provocada no sujeito da escrita por pessoas (os avós maternos, o primo José Dinis, o irmão Francisco), lugares (o rio Almonda e o Tejo, o olival, ruas de Lisboa), habitações (em constantes mudanças por partes-de-casa), momentos afectivos (encontros com raparigas, a ternura dos bacorinhos que dormiam com o avô, o medo dos cães, o gosto pelos cavalos), de lazer aprazível (idas à pesca ou ao cinema «Piolho»), de contacto problemático com os outros (a maçaroca surripiada ao primo), de entrada na escrita (escrever na pedra, os ditados na escola, a primeira quadra). Tudo isso é o livro.
Mas o livro é também o lugar original formulado no começo, em estilo indirecto (como o nome que a contingência cola à pessoa), a colocar no coração da frase um caminho tosco de vida (a «azinhaga»), ligado à História e à imaginação, às águas do rio e às árvores que o bordejam, e ao extenso olival com troncos em cujas locas «se acoitavam os lagartos», destruído pelas transformações agrícolas da União Europeia. «Contam-me agora que se está voltando a plantar oliveiras», escreve o autor; «o que não sei é onde se irão meter os lagartos». E de certa forma, nestes troços despegados da recordação (como as talhadas de melancia que come, já perto do final), «o pobre de mim», como ironicamente se autoapelida ao jeito de Fernão Mendes Pinto, parece não ter em vistas um fito muito estável, oscilando entre um projectado Livro de Tentações e estas memórias do «eu pequeno», do qual não anda visivelmente à procura já que é ele que aqui o comanda. E do que a mim me parece que anda à procura é de saber mesmo onde se meteram os lagartos. Como se a própria estrutura da narrativa, dada em continuidade de discurso mas entremeada de espaços em branco, figurasse frinchas por onde esses seres vivos alapardados ao sol da memória se escapam quando pretendemos alcançá-los com os gestos das nossas sombras escritas.
A mistura de real e imaginário, dada pela memória que inventa a vida para a dar em literatura, atravessa a individualidade do memorialista para reconstituir esboços de história das mentalidades, hábitos quotidianos, crenças e modos de agir hoje raros. Quem se lembra do uso de defumadouros para afastar doenças e mau olhado? Ou do ruído da «costureira» em tardes de verão ou serões silenciosos de leitura e bordados? Eu lembro-me. Como me lembro do sistema de contabilidade dos analfabetos de então, o da avó Josefa de Saramago e da minha tia Emília, que tinha um lugar de fruta e hortaliça e não lhe falhava um tostão no rol de fiados, com aqueles sinais que mais ninguém entendia e me ensinou, de círculos fechados com uma cruz interna (um escudo), um traço diagonal interno (cinco tostões), sem traço (um tostão) e risco sem círculo nenhum (meio tostão). Ou sistemas de partilha empírico-afectiva, como a sopa que o petiz e a mãe comem do mesmo prato, com duas colheres e um de cada lado. Ou o costume, por necessidade e natureza, de andar de pé descalço; ou ainda, entre pavores e tentações, e medo do escuro como todas as crianças, dormir no chão com as baratas, «não estou a inventar nada, de noite passavam-me por cima», diz ele sem mais comentários. E passa adiante, tal como o petiz dormia. E que passou adiante vê-se em cenas do ontem dadas por ele hoje, como a do Otelo de Mouchão de Baixo ou do sapateiro que lia Fontenelle. Para pé-descalço e meio prato de sopa, não se pode dizer que José Saramago venha mal alimentado do caminho que percorreu.
Nas asas da palavra
Ao ouvir ler em voz alta o primeiro livro de que se lembra, Maria, a Fada dos Bosques, Saramago entra em contacto com a literatura, e o importante não parece ser tanto a impressão que lhe provocam cenas do livro como a sensação de ser levado a outros mundos pela articulação encantatória das frases, revigorando em experiência pessoal as «palavras aladas» de Homero que como escritor tenta também. Essa é talvez a maior das tentações neste livro onde, a certa altura, explica que a sua génese era a de ponderar sobre «a teratologia da santidade», isto é, os desejos e monstros, os pesadelos e pavores da noite que afligiam a mentalidade infantil reprimindo a sua expansão de natureza humana. É por isso que a Saramago-criança se vai contrapondo o Saramago-homem, a olhar para si de longe e para o mundo onde, pequeno, mas porque pequeno é o homem, se integra natural e artificiosamente. Com a sua propensão para a integração na natureza (campos, animais, costumes urbanos primitivos) e a vocação da construção da arte. Quando relata as idas à pesca em petiz, e a imobilidade espelhada do pedaço de rio, é o Saramago de hoje quem escreve, a partir da indizível sensação da criança: «não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água». A recordação é por vezes confessada invenção («senti dentro de mim, se bem recordo, se não o estou a inventar agora, que tinha, finalmente, acabado de nascer») assim se transmudando em descoberta; outras vezes acontece, inexplicável, pois «esquecemos o que gostaríamos de poder recordar» e, por outro lado, «recorrentes, obsessivas, reagindo ao mínimo estímulo, vêm-nos do passado imagens, palavras soltas, fulgurância, iluminações, e não há explicação para elas, não as convocámos, mas elas aí estão». O livro termina com uma iluminação destas, forte e concentrada, adjacente ao que se narrou, e onde o autor se dá como sujeito de observação e participante moral da acção. Aquilo, afinal, que o escritor vai ser. Passa-se nas ruínas de uma malhada de porcos, entre um homem e uma mulher não identificados, e o narrador (jovem) senta-se num valado, «a distância, perto de uma oliveira ao pé da qual, dias antes, tinha visto um lagarto verde». E quando a cena termina, com a partida das personagens, o livro finda também com a observação do autor: «nunca mais tornei a ver o lagarto verde».
Os lagartos, que de início afirmava não saber onde se tinham metido, meteram-se afinal aqui no livro, como símbolos da familiaridade terrestre e do gosto pelo sol, em lendas mediterrânicas representando a inexorabilidade da morte. Como reconhecimento também da inocência perdida, sobretudo porque a observação se segue à menção da morte de José Dinis, o primo com quem se dava como o cão e o gato, e a quem, nas penúltimas linhas, furtara a maçaroca, após saborearem ambos a bela melancia de casca verde-escura, de cujas talhadas foi ficando o «castelo» ou «coração». Isto é, o cerne da recordação. A simbólica de Saramago é sempre objectual e pede para ser lida à letra, como palavra a saber a sentidos, mas a sua notação sóbria, despojada, emerge isolada no texto, a despertar os sonhos e tentações, também no espírito do leitor."
Continuo a citar o suplemento "Mil Folhas" do jornal Público de 17 de Novembro:
"[...]MIL FOLHAS - É este um livro à procura da idade da inocência? A idade em que todos os pecados são perdoados? Dos que confessa, o maior talvez seja o ter desviado uma maçaroca do seu primo José Dinis...
JOSÉ SARAMAGO - ... o resto é tudo natural.
P. - Bom, há uns jogos de amor...
R. - À procura da idade da inocência, ou da idade em que se supõe que se é inocente? Tínhamos de ter uma definição bastante exacta de inocência. É-se inocente da mesma maneira aos quatro anos do que aos oito? Não, ainda que haja uma dose importante de inocência em cada uma dessas idades.
P. - O que pretendeu, então?
R.- A minha infância nunca se desvaneceu nas brumas da dita memória. Eu considero que, se não somos a criança que fomos, pelo menos a criança que fomos gerou a pessoa que somos. Se a minha vida tivesse sido só em Lisboa, é possível que eu não escrevesse este livro. Mas a recordação daqueles anos que vivi...
P. - ... muito poucos: passava lá as férias, apenas.
R. - O que conta é a intensidade das vivências, não é a duração delas. Comecei a ir para a Azinhaga quando tinha quatro ou cinco anos. Antes disso não tenho memórias. Mas a partir dos seis anos até aos 15 ou 16, já é muito claro para mim. Ia nas férias grandes, nas da Páscoa, do Natal, tudo quanto era férias. Muitas vezes os meus pais não iam mas eu ia de certeza.
P. - Por que é que a grande cidade, que é tão mágica, não lhe deixou essas marcas que deixou a aldeia, pobre?
R. - Eu não tinha vindo da aldeia. Vim para Lisboa com um ano e meio. O mágico tinha ficado lá. É um fio que não se interrompeu. O fio veio da Azinhaga até Lisboa e imediatamente foi de Lisboa até à Azinhaga. E todo esse tempo houve uma espécie de "vai e vem" entre um lugar e outro. Mas o lugar onde eu queria estar, de facto, era a aldeia.
P. - Tirando algumas descrições da ida a cinemas de bairro, a cidade acaba por não ser um cenário forte da sua escrita. Por que será isso?
R. - Provavelmente eu tinha a imaginação demasiado ocupada com a aldeia e a nostalgia de cada vez que saía de lá, porque saía de lá com lágrimas. A aldeia eram os meus avós, a casa dos meus avós, a bicharada - as galinhas, os galos, os patos, os porcos - e aquilo que sempre foi a minha fascinação: os longos passeios sozinho. Aquele não era o tempo em que os pais diziam "tem cuidado, olha que...". A gente saía, saía.
P. - Punha o alforge, tomava um conduto...
R.- ... e andava quilómetros e quilómetros. Às vezes era simplesmente o rio, ou para pescar, ou para nadar, ou para remar [e conduzir o barco à vara no rio Almonda, afluente do Tejo], que é das coisas de que tenho mais saudades.
P. - Porquê voltar àquelas histórias que já nos comoveram tanto [quando as contou no discurso do Nobel, em 1998, em Estocolmo], como a do seu avô que se despediu uma a uma das árvores do quintal, antes de morrer; da sua avó que lavava os bácoros mais fraquinhos, no Inverno, e os levava para o quente da cama, assim os salvando?
R. - Não se contam só essas. Contam-se histórias que você nunca tinha ouvido: a do meu tio Francisco Dinis, que queria matar a minha tia [Maria Elvira]; a história de Domitília [prima, com quem fez jogos amorosos na cama, com menos de 10 anos], você também não sabia nada disso. O que não teria sentido é que, tendo de escrever este livro - porque eu tinha de escrever aquele livro, queria escrevê-lo desde há muitos anos -, omitisse aquilo que já tinha contado.
P. - Acha que os seus leitores ficavam mais pobres se não conhecessem esses episódios da sua vida, alguns até feios, desagradáveis?
R. - Eles dirão. Você acharia natural - ainda que, conhecendo-me, estranhasse - que eu me pusesse a escrever a minha autobiografia até ao minuto antes. Do meu ponto de vista, não valeria a pena, não o farei. Sentiria vergonha, como já disse. Agora esta pequeníssima autobiografia, de uma criança que não tem ideia nenhuma do futuro que vai ter, que nasceu num meio que não era o mais propício a grandes aventuras intelectuais?...
P. - Há uns anos escreveu quatro ou cinco livros ["Cadernos de Lanzarote"] que outra coisa não foram do que um diário da idade adulta...
R. - Parei porque o último era de 1997. No ano seguinte ganhei o Prémio Nobel. Imaginar-me a contar o prémio e tudo o que veio depois - os aplausos, as emoções, as condecorações, os doutoramentos, não. Afasta de mim esse cálice! Tive de cortar. Não senti que fosse higiénico entregar-me a esse exercício.
P. - O que é que deve a esses primeiros anos da sua vida?
R. - Não se trata de dever. Creio que me reconheço nesse tempo com a mesma realidade que me conheço hoje. Sei umas quantas coisas mais? Sim. Mas se olho para dentro de mim, não vejo diferenças.
P. - As suas grandes decisões, tomou-as na idade da razão. Até chegou a escrever uns livros que depois repudiou. Aquilo que verdadeiramente José Saramago é, no fundo, é aquilo que foi sem ter responsabilidade nenhuma nisso, mais aquilo que passou a ser a partir do momento em que se tornou responsável pelos seus actos.
R. - O quê, concretamente?
P. - O resto, a partir dos 15 anos.
R. - Tinha que meter aí uma série de coisas que não me apetecia escrever: os namoricos - a que me refiro também neste livro, mas com uma certa distância e uma certa ironia...
P. - ... a Domitília e a Maria da Piedade, se estivessem vivas, talvez não apreciassem muito...
R. - ... brincadeiras, quem não passou por elas? Cito sempre aquelas palavras de Alexandre O"Neill: "Não contes a vidinha." Sigo-o. E a prova é que, tirando o "Manual de Pintura e Caligrafia", onde há dados autobiográficos que surgem depois aqui, não há dados pessoais nos meus livros.
P. - No fundo, vem contar ao mundo a parte do tempo que viveu, mas da qual não tem responsabilidade nenhuma: a paisagem, os pais e avós, os vizinhos.
R. - Estava a construir-me, ora essa.
P. - Milhares de pessoas ao mesmo tempo estavam a construir-se e viveram assim, exactamente. A sua diferença [em relação aos outros] é depois.
R. - Também quando o Salazar nasceu em Santa Comba Dão e andava lá atrás das cabras, se é que andou, nunca lhe passou pela cabeça que viria a ser aquilo que foi.
P. - Salazar e Saramago, depois disso em que foram, se calhar, iguais, diferenciaram-se.
R. - Mas foram isto depois disso. O tempo não se interrompeu. A pergunta deve ser posta ao contrário...
P. - ... se for melhor do que a minha, fico-lhe agradecido.
R. - Teria você feito o que fez se não tivesse vivido essa vida pequena e insignificante - ou aparentemente pequena e só aparentemente insignificante? A grandeza que eu lhe encontro é exactamente essa: uma criança no meio do mundo. Tire-lhe a paisagem, essa palavra não interessa. Uma criança no meio do mundo olhando em redor e dizendo: "Estou aqui."
P. - A minha pergunta não era exactamente essa. Era: o senhor esteve no meio do mundo como milhões de outras crianças do mesmo mundo. E no entanto foi diferente deles todos. A sua singularidade começa aí.
R. - Se você pensar em si mesmo...
P. - ... se calhar estou a pensar em mim mesmo...
R. - ...tem de chegar a essa mesma conclusão e fazer essa mesma pergunta: em que momento é que eu comecei a ser o que sou? A única resposta é esta: começámos a ser o que somos no dia em que nascemos. Não vale a pena especular muito mais ao redor disto. Agora: ao longo da vida podem acontecer coisas que abrem caminhos até aí inesperados. Por exemplo: escrevi um livro em 1947; outro que ficou inédito; depois não escrevi nada mais durante 19 anos. Se eu tinha ganho o apetite de escrever, por que é que não continuei?
P. - Porque aí tinha já a razão e tinha o sentido crítico. Aquilo não lhe chegava.
R. - Muito bem. Concluí (embora só mais tarde o tenha pensado): "O que estou a aproveitar são sedimentos de leituras; não vivi nada, não sei nada e estou para aqui aldrabar." Depois aparecem os "Poemas Possíveis" e uma série de livros, a partir de 1966. Aquilo que eu sou deve ter começado por alturas dos últimos dias de Novembro de 1975. É então quando eu decido que tenho de procurar trabalho. Claro que o meu partido não teve a gentileza de me convidar para ir para a redacção de "O Diário", como fez a todos os que saíram do "Diário de Notícias", na altura. Na altura não gostei nada. Hoje continuo a não gostar, mas agradeço.
P. - Ganhámos um escritor, não sei se tínhamos ganho um jornalista comunista interessante...
R. - Tenho já uns seis ou sete livros escritos. Estou sem trabalho nem esperança de ter. O que é que faço? Foi aí que decidi, sem dramatismo nenhum, como quem sente que chegou a hora de tomar aquela decisão: "Vou ver o que é que posso finalmente fazer para chegar a ser um escritor." Até aí tinha livros, mas não me via como escritor. É aí que vou para o Alentejo; é aí que vivo, durante seis ou sete anos de traduções.
P. - Não seria interessante escrever um livro em que nos contasse mais profundamente isso tudo, à semelhança do que fez sobre a sua infância?
R. - Isto conta-se em meia página.
P. - É curioso que esse universo por onde se movimenta e o seu olhar se espraia, no livro, nunca enxergue o mundo dos possidentes. Há um seu tio que trabalha para um senhor rico; há no liceu um menino rico a quem as criadas vão levar o almoço...
R. - ... e há os patrões da minha tia Maria Natália...
P. - ... os Formigais. Mas é tudo muito distante, de resto renuncia até a chegar-se-lhe um pouco mais quando surge a oportunidade de ir ao palacete do tal menino "gordo, triste", porque percebe que foi apenas um instrumento.
R. - Tinha deixado de ser útil, pensei. O caminho dele era outro: ele estava no liceu, eu tinha ido para a Escola Industrial aprender a ser serralheiro mecânico. Não devíamos ter muita coisa a dizer um ao outro.
P. - O poder, a riqueza, a existência de uma outra condição - isso não o tocou, nunca, neste período, sabendo nós que se torna, depois, um homem que quer mudar o mundo?
R. - Há que entender o que era ser pobre nessa época. A gente nascia pobre e ficava pobre. O mundo parecia que estava organizado assim. Havia uma espécie de aceitação dos factos. Eu era uma criança, se os mais velhos tinham aceitado os factos, eu também os aceitava. Era assim. Nós, os da minha classe, tínhamos com essa outra classe uma relação de dependência. Quem era pobre ia para a praça ser escolhido para ir trabalhar durante uma semana ou alguns dias. Os capatazes vinham, escolhiam este, aquele, outros ficavam.
P. - Quando o livro termina, o José Saramago passa pelo palacete, indiferente, ou conformado ao seu destino e ao destino diferente a que o seu colega do liceu estava destinado.
R. - A construção do meu destino talvez comece aí. No fundo, essa ideia de que com os poderosos não há que ter relações - primeiro, porque eles não querem; depois, porque talvez nós não devamos - começa aí, para mim, de uma forma inconsciente. Que interessa ir a casa da família Veiga, ou da família Faria, dos grandes latifundiários lá da terra? Eu era o neto do Jerónimo Melrinho, nada mais. Não tinha entrada. Como é que eu podia falar deles? Mesmo hoje, sou incapaz de pôr num romance meu um rico. Porque não os conheço. Dizer simplesmente "aqui está um personagem rico", e de três em três páginas, para que o leitor não se esqueça, lembrar que ele é rico, não é evidentemente suficiente. Tenho uma espécie de rejeição instintiva aos salões do poder.
P. - Embora nos últimos 20 anos não tenha feito outra coisa que não pisar corredores alcatifados.
R. - Circulo por aí com naturalidade. Mas entro e saio. Não fico lá.
Espero poder escrever ainda mais um livro ou dois
José Saramago diz que se sente tentado a fechar o círculo, com esta autobiografia. Porque acha que esgotou, de algum modo, os grandes temas da vida. E porque não lhe interessa estar a contar agora "a vidinha".
P. - Já lhe "caiu" entretanto algum título, do limbo da inspiração [como costuma contar que lhe acontece regularmente, talvez com a excepção de "Levantado do Chão", que não nasceu "de qualquer iluminação súbita"]?
R. - Ainda não. Não sei se deva estar inquieto, ou não. Às vezes tem tardado mais. Este livro é um livro perigoso, sabe.
P. - Porquê?
R. - Porque é um livro tentador.
P. - Em que sentido?
R. - No sentido em que, no fundo, fecha o círculo. E se eu me deixasse ficar por aqui?
P. - Os seus leitores mais fiéis responder-lhe-iam: "Desculpe lá, ainda só vai nos 15 anos. A parte mais rica da sua vida está ainda à espera [de ser contada]..."
R. - Vamos lá a ver: autobiografia já disse que não haverá. Enfim, espero poder escrever ainda mais um livro ou dois.
P. - Na entrevista sobre "As Intermitências da Morte" interrogava-se sobre se não teria já chegado o dia em que já não teria nada mais a dizer [Mil Folhas, 12-11-2005].
R. - Essa é uma questão que se apresenta. Sobretudo - se me é permitido dizê-lo nestes termos - para o caso da literatura que eu faço.
P. - Pode explicar melhor?
R. - Nos meus livros, sobretudo nos romances, abordo questões da nossa vida que considero importantes. Isso levou-me a um tipo de temas e de escrita que aspiram, não direi à universalidade, mas a interessar a todos nós, em menor ou menor grau. Ou pelo menos àquelas pessoas com quem, por pertencerem a culturas próximas das nossas, temos uma linguagem, conceitos e práticas em muitos aspectos comuns. Este tipo de abordagem não admite repetições. Não quer dizer que eu tenha dito tudo em cada caso. Mas não posso acrescentar nada mais àquilo que já está escrito. Se eu contasse a vidinha, para voltar ao O"Neill (isto é: com quem fui para a cama, os copos no bar, o emprego que se ganha ou se perde), isso sim, podia repetir à saciedade.
P. - Se acaso acontece que é o último, o último parágrafo que terá escrito será aquele em que conta a história da infidelidade de uma mulher da aldeia, que surpreende com um forasteiro, entre a vegetação, nas ruínas de uma antigas malhadas de porcos, onde dias antes tinha avistado um grande lagarto verde. As frases com que termina o livro: "O homem acendeu um cigarro. Soltou duas baforadas, depois deixou-se escorregar do valado e despediu-se: "Adeus." Eu disse: "Adeus." A mulher tinha desaparecido de vez. Nunca mais tornei a ver o lagarto verde."
R. - O fecho desse livro, por excelência, é esse. Recorde-se que ela disse que eu ia dizer ao marido. Não é preciso dizer que não o fiz.
P. - Sim, portou-se bem. Diz que esgotou, de algum modo, os grandes temas que lhe interessa abordar. Também acha que isso aconteceu no plano literário?
R. - Eu referia-me ao plano literário. Embora se trate de problemas no plano temático, eles são tratados num plano literário. Bom, mas dito isso, acho que será impossível que eu tivesse esgotado nos meus livros tudo quanto são questões temáticas. Possivelmente daqui por quatro dias vem uma ideia. Não entremos em pânico... "
Continuo a citar a entrevista conduzida por Adelino Gomes, editada pelo jornal Público de 12 de Novembro:
"[...]
PÚBLICO - Se eu lhe dissesse, depois de ler a sua autobiografia, que foi um salazarista quando era adolescente, o que é que respondia?
JOSÉ SARAMGO - Que nunca fui salazarista.
E que esteve "ligado ao fascismo", como disse em título [na sexta-feira] o Correio da Manhã?
A ignorância tem alguma inconveniência. Quando se junta à estupidez, não há remédio. O que não consigo compreender é que não haja um director ou um chefe de redacção atentos.
Mas sabe que, antes do Correio da Manhã, foi O Estado de S. Paulo [edição do dia 4] quem o escreveu, em título?
É estúpido, evidentemente. Perguntaram o que achava [da confissão] do Günter Grass [no livro Beim Häuten der Zwiebel (Descascando a Cebola), edição em Portugal prevista para o ano que vem, de que fora voluntário nas Wafen-SS, de Hitler, aos 17 anos]. Eu estava bem disposto e respondi dizendo que tinha chegado a altura de fazer uma confissão. Eles tomaram à letra a ironia e disseram isso. No livro, conto que todos fomos da Mocidade Portuguesa. O Correio da Manhã é um eco daquilo que O Estado de S. Paulo escreveu, julgando que tinha na mão um escândalo.
No livro, assinala que, no liceu, conseguiu ficar sempre para último, na fila, e nunca usou a farda.
E escrevo, a propósito, que essa foi a minha primeira vitória contra o fascismo. É preciso ter muito cuidado no uso da ironia com jornalistas. Sobretudo tratando-se de uma resposta por escrito. Ele [o entrevistador brasileiro] não sabia nada [sobre a história da Mocidade Portuguesa].
DEIXEM O GRASS EM PAZ
Ele faz a ligação a Grass, "que confessou, na autobiografia, ter pertencido à juventude hitleriana". Por que é que, a propósito, compreende a confissão tão tardia de Grass?
Ninguém se preocupa muito que as pessoas não revelem os seus segredos. Ninguém os conta, ou conta só algum que casualmente interesse. Todos guardamos segredos. Mas parece, do ponto de vista daqueles que se escandalizaram, que não podemos guardar segredos. Então não vamos guardar segredos, todos. Dizem: "Ah!, mas uma figura pública..."
Uma figura que se assumiu como autoridade moral...
Podia alegar-se aí que Saulo [de Tarso, nome original de S. Paulo] também perseguiu os cristãos e depois se converteu. Evidentemente que teria sido melhor para Grass se o tivesse confessado desde o princípio. Mas ele usou o jogo das meias-verdades.
O que é censurável.
Mas não haverá também aí uma grande hipocrisia das pessoas que se apresentam como grandes virtuosas, honestas, límpidas de carácter, com passados impolutos? Não será antes o caso, tão ansiado por tanta gente, de descobrir os pés de barro dos gigantes que deviam ser de bronze?
Também. Por isso é que aqueles que se agigantam têm que estar preparados para isso.
Não será a história daquele homem que andava de terra em terra à espera de que o trapezista do circo caísse? Tomei partido a favor porque aquilo [que Grass fez] não apaga aquilo que foi o futuro desse tempo. Não tinha o direito de se armar em fiscal moral dos outros? Eu não quero julgar isso. Eu não condeno o Günter Grass. Devia ter sido dito? Pois devia. Mas, pelo menos, já está dito. Deixem agora o homem em paz.
O 25 DE ABRIL FOI UM FOGACHO EM QUE NÓS INGENUAMENTE ACREDITÁMOS
Sondagens recentes, em Portugal e em Espanha, indicam que há gente de cá e de lá disponível para avançar para uma união dos dois países. Independentemente do valor das sondagens, se lhe fizessem a si a pergunta, o que respondia?
Entregava um ensaio de 12 páginas que publiquei há uns 20 anos e que se chama Sobre o meu iberismo.
Pode resumir?
Eu acho que nós estamos cansados. Como portugueses, estamos cansados de viver. Se calhar, a nossa missão histórica acabou.
E agora?
E agora quê? Não sabemos. Passámos séculos de dependência: dependência da Grã-Bretanha, dependência disto, dependência daquilo. Agora somos também dependentes, o que não é vergonha nenhuma: há panelas de barro e há panelas de ferro. Mas aqui falta uma coisa que se chama brio. Cada vez mais. Somos capazes de fogachos, como o 25 de Abril foi - um fogacho em que nós ingenuamente acreditámos. Não era certo, não era possível, não era crível, mas o tempo da felicidade para Portugal chegou então. Durou, como as rosas de Malherbe, l"espace d"un matin. Acabou.
Deixou coisas boas.
Não. Não deixou nada. As coisas boas que criou, eliminou-as todas.
Os três "D" de que se falava: Democracia, Desenvolvimento, Descolonização? Todas as colónias são independentes.
Não tínhamos outro remédio se não sair de lá, homem. Estávamos simplesmente derrotados.
Salazar estava [politicamente] derrotado desde a II Guerra Mundial, toda a gente acreditava que vinha a democracia para Portugal, sopravam ventos de descolonização e os grandes impérios acolheram-nos, mas Portugal não.
Isso só prova que países democráticos não se importavam nada de conviver com países não democráticos desde que isso, de uma forma ou de outra, servisse os seus interesses. E a história continua, veja-se o caso da China.
Foi preciso jovens militares virem acertar o relógio da História, que tinha os ponteiros atrasados em Portugal.
Talvez. Mas nós estávamos na Europa, numa comunidade como esta não era possível manter uma ditadura, mesmo que ela fosse ou se tornasse soft. Acabaríamos por fazer aquilo que a Espanha fez, mas, para isso, também precisou que morresse o ditador: uma transição.
Influenciada por nós, como aconteceu, aliás, noutros países do Mundo.
Há dias Freitas do Amaral contou a história de quando chamou os embaixadores dos países do Conselho de Segurança a quem comunicou estar a pensar reformá-lo. Resposta de todos eles: "Nem pense nisso. Nós vetamos". O 25 de Abril é uma data, apenas. Converteram-no numa data, nada mais. Já o disse em público e repito: eu já não celebro o 25 de Abril. Há um ante-25 de Abril que eu celebraria, se fosse disso que se tratasse, que é justamente o movimento que levou ao 25 de Abril. Feito por esses militares que a democracia liquidou, na maior parte dos casos, passando-os à reforma, perseguindo-os. A esses, sim, a esses tiro eu o meu chapéu. Mas há o tempo que vem depois. Muitos pensaram que tinha chegado a hora de mudar o país, que era de uma certa maneira mudar a História ou ter, sobre ela, outra visão. Não vale a pena entrar nos excessos, na reforma agrária, nas nacionalizações, mas isso é que eram consequências do 25 de Abril.
NÃO ACEITO QUE SE DIGA QUE FICÁMOS COM A DEMOCRACIA
Volto aos três "D".
Não aceito que se diga que ficámos com a Democracia.
E também com a independência das colónias; e com algum desenvolvimento...
O desenvolvimento em Espanha, nos anos 60, ocorreu sob o franquismo. Não foi necessário uma revolução. A China não é já uma ameaça para os EUA? [mostra uma entrevista que deu ao Nouvel Observateur, quando foi lançar a Paris o Ensaio sobre a Lucidez].
Nessa entrevista diz: não há democracia, mas um poder que está por cima dos governantes em quem votámos e que não são, afinal, quem decide. A pergunta que dá vontade de lhe dirigir, ao senhor, um céptico que aderiu a uma ideologia que transportava o optimismo histórico é: o que fazer, então?
O que fazer? Temos um cerimonial democrático cada vez mais falto de vergonha: campanhas eleitorais que custam rios de dinheiro, subsidiadas muitas vezes não se sabe por quem ou demasiado se sabe por quem; promessas que se sabe de antemão não serão cumpridas; processos cosméticos do género de termos um Governo de um partido socialista mas não um Governo socialista. Porque, aqui e em qualquer parte do Mundo, o partido no Governo vai poder chamar-se o que quiser porque vai ter que fazer exactamente a mesma política. Uma comédia de enganos. Não servimos para nada mais senão para homologar coisas que não têm nada que ver connosco porque não podemos influir nelas. Aristóteles, na Política, dizia que, num Governo democrático bem entendido, o governo da Polis, os povos deviam estar em maioria, pois são a maioria.
É esse o princípio do sistema representativo...
No livro A Morgadinha dos Canaviais, Júlio Diniz, um escritor suave, descreve aquela situação dos votos que se rasgam e são substituídos à última hora para eleger não uma pessoa mas a outra. Há coisas que deviam voltar a ser lidas.
E, no entanto, é extraordinário o avanço nesse campo desde essa altura, entre nós.
Mas quem é que não avançou nestes dois séculos? Seremos excepção? O extraordinário seria não termos avançado. Eu talvez seja demasiado céptico, mas você é demasiado optimista.
É PRECISO MUDARMOS A VIDA SE QUEREMOS MUDAR DE VIDA
O seu discurso quer mostrar-nos que a banalidade está instalada no mundo e que não há nada a fazer. Mas ela é mudável. Este seu livro é a prova viva de que um homem que nasceu numa aldeia entre gente pobre e analfabeta pode libertar-se daquilo que parece ser o seu destino.
Ela é mudável, de acordo. Mas então mudemo-la! O que eu ando a dizer já há tempos é que é preciso mudarmos a vida se queremos mudar de vida. E isto aplica-se a tudo.
Esclareça-me qual o 25 de Abril que valia a pena celebrar?
Um 25 de Abril que realmente tivesse mudado a mentalidade dos portugueses. Que tivesse feito de nós pessoas capazes de construir. Que, dentro de nós, eliminássemos essa espécie de fatalidade de que, desde o D. Sebastião, temos sempre que depender de alguém que nos ajude a atravessar a rua.
Por exemplo?
Transformações como as nacionalizações. Agora, até para obter fundos para pagar dívidas se privatiza e se vende. Não foi isto que nós quisemos. Já sabemos que não há independência, que a soberania é relativa, que a autonomia é consoante os interesses dos vizinhos, mas podíamos ser outra coisa e não somos. Almeida Garrett escreveu: "A terra é pequena. E a gente que nela vive também não é grande".
Alguma vez se interrogou sobre se, com esse 25 de Abril com que sonhava, não estaríamos hoje - tendo em conta o que se passou noutras latitudes - num 25 de Abril completamente pervertido, pior e, seguramente, com menos liberdade?
Sou suficientemente céptico para lhe responder assim: considerando a palavra "não" a mais importante do vocabulário, posso dizer que uma revolução é um "não". Mas sei, perfeitamente, que, feita a revolução, o "sim" recuperará posições pouco a pouco. Tanto faz num sistema capitalista ou socialista. O sistema ensina hipocrisia a partir dos bancos da escola. Não mudaremos a vida, se não mudarmos de vida."
Ainda com assinatura de Adelino Gomes:
"O HOMEM A QUEM ROUBARAM AS OLIVEIRAS DA INFÂNCIA
"Vamos! Vamos!", diz, poucos minutos após a primeira paragem.
Foi ele quem chamou a atenção para a curva do rio. Um carro desviara-se da estrada principal. Preparamo-nos para esclarecer as razões da inusitada incursão de um casal entre uma e a outra estreita margens, mas o escritor Nobel mostra-se impaciente. Tem pressa de chegar à Azinhaga, a terra onde nasceu.
O que vê, porém, à medida que avança o carro - no qual viajam, além dele próprio, José Saramago, a mulher, Pilar, o fotógrafo espanhol Jose Manuel Navia e este jornalista do PÚBLICO - deixa-o inconformado.
- Aqui havia oliveiras - começa por constatar. - Roubaram-me as minhas oliveiras! - protesta, por várias vezes, à medida que desfila aos nossos olhos a interminável, monótona paisagem, nua de árvores.
- Olhem para estes campos [de milho transgénico]. Aceitaram as indemnizações que a CEE ofereceu e agora temos isto, tudo igual...
Iniciámos a peregrinação a pé pela aldeia. Quase nenhuma emoção perante o lugar em que outrora se ergueu a casa natal. Está guardada para mais à frente, no que resta da casa que foi dos avós maternos.
Pilar acha que deve comprar o espaço. Não parece ser essa a sua ideia
Desfia recordações para o fotógrafo espanhol, que pretende ilustrar, com imagens desta peregrinação, o texto que a revista de domingo do El Pais lhe vai dedicar, na série com grandes escritores mundiais deste Verão de 2001.
Os locais gostam de lembrar que a aldeia, administrativamente situada no concelho da Golegã, tem foral desde D. Sancho II e que é a mesma a que, antes da fundação de Portugal, chamavam Santa Maria do Almonda. Características edificações na rua principal constituem a prova de que ali se ergueram, a partir do século XII, palácios, solares, igrejas e capelas, o mesmo será dizer, "ali se foi construindo um país".
A Azinhaga foi, nos célebres concursos salazaristas de António Ferro, a "aldeia mais portuguesa do Ribatejo". O contacto com os toiros, nas fainas do campo, fez da raça de maiorais desta terra "de lezírias e espargais", pelo saber, os mais famosos campinos das terras da Borda d"Água, diz uma nota do rancho folclórico "Os Campinos da Azinhaga", lida durante a breve paragem para almoço.
Não foi para estas divagações, contudo, que José Saramago se deslocou de Lisboa. Sobe, e nós com ele, ao campanário da igreja. Dá um beijo a uma prima, encontrada na rua. Ruma ao Paul do Boquilobo, para onde gostava de ir, em longas viagens de dias, e para onde - torna-se claro nos gestos, nas recordações, na insistência em ir até onde o carro pode chegar - não se importava nada de partir agora mesmo em nova aventura. Boquilobo, oferecida, depois da crise de 1385 por D. João I a João das Regras com a legenda "Melhor lhe dera se melhor houvera".
Passados cinco anos, estas recordações tomam a forma de livro - As Pequenas Memórias (Editorial Caminho) - que aqui mesmo vai ser lançado, em cerimónia de ressonância internacional, na próxima quinta-feira, 16, num regresso simbólico aos lugares da infância e adolescência do escritor, na aldeia ribatejana.
Casas, oliveiras, arbustos, dois rios, um pântano. Que importa que deles só restem os dois últimos? Que tenha desaparecido sob um monte de escombros a casa que foi a pobríssima morada dos avós maternos de quem os leitores já sabem os nomes, desde o discurso de aceitação do Nobel da literatura, em 1998 (Josefa e Jerónimo se chamam, este último, analfabeto, "o mais sábio dos homens" que Saramago conheceu)? Que importam os estragos do prémio da CEE sobre os olivais desaparecidos?
A cada instante, José levantará as paredes da casa branca, plantará as oliveiras, fechará o postigo da porta e a cancela do quintal e dirá: "Avó, vou por aí dar uma volta", e ouvi-la-á responder: "Vai, vai", meterá "um bocado de pão de milho e um punhado de azeitonas e figos secos no alforge", pegará num pau para qualquer mau encontro canino e partirá para uma das quatro partes em que o universo se dividia então para a criança "melancólica", para o adolescente "contemplativo e não raro triste" que era ele: o rio, "os olivais e os duros restolhos do trigo já ceifado", a mata de tramagueiras, faias, freixos e choupos que ladeia o Tejo, um pouco à frente da confluência com o Almonda, ou o Paul do Boquilobo, "um lago, um pântano, uma alverca que o criador das paisagens se tinha esquecido de levar para o paraíso".
Tudo nítido setenta anos depois - paisagem, gentes, afectos -, numa revisitação através do "poder reconstrutor da memória". E da literatura. Adelino Gomes".